domingo, 1 de maio de 2016

Contraponto

Trechos de Contraponto (1928), de Aldous Huxley.


"Reformado compulsoriamente em Harrow", começava o resumo, "saído de Sandhurst no rabo da lista, teve uma carreira distinguida no Exército, atingindo durante a guerra um alto posto no Military Intelligence Department."

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Mesmo a guerra - disse Rampion. - Foi uma calamidade domesticada. A gente não ia lutar porque tivesse o sangue a ferver. Ia porque tinha ordem de ir; ia porque era bom cidadão.

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- Saí do meu casulo durante a guerra, quando tudo estava fora dos eixos. Não vejo como nossos netos possam fazer uma derrubada mais completa do que a que se fez naquela época. Então, por que haveria de vir o desentendimento?

- Talvez eles tenham posto tudo de novo nos seus lugares... - sugeriu Spandrell.

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- Foi durante a guerra - principiou Lucy. - Eu estava beirando os dezoito, parece. Recém-lançada ao mar... E, diga-se de passagem, alguém quase me quebrou literalmente uma garrafa de champanha no corpo... Naquela época a gente se divertia de maneira um tanto febril, vocês devem estar lembrados.

Spandrell fez um sinal afirmativo, se bem que ao tempo da guerra ele de fato não passasse de um menino de escola. Walter também meneou a cabeça, cheio de experiência.

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Ficou noiva de Harry Markham. A vida prometia começar de novo. Depois veio a guerra. Harry alistou-se e foi morto. Esta morte condenou a Srta. Cobbett à estenografia e à datilografia pelo resto da existência. Harry era o único homem que a tinha amado, o único homem que quisera correr o risco de amá-la.

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Os Rampions moravam em Chelsea. A casa deles consistia num grande estúdio com três ou quatro quartinhos anexos. Um bonito recanto, na sua maneira um pouco rústica, refletiu Burlap, ao fazer soar a campainha da porta naquela tarde de sábado. E Rampion o tinha comprado por pouco mais que nada, exatamente antes da guerra. Não pagara mais aluguéis depois da guerra. Um presente de 150 libras líquidas por ano.

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Quarles ajuntou: - E aquilo só teve um resultado bom; refiro-me ao acidente. Salvou-o de ir para a guerra e de ser morto, provavelmente. Como o irmão dele.

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"A pergunta foi uma impertinência", pensava Philip. "Que lhe importa que eu seja ou não um mutilado da guerra? Como continuam a se vangloriar da sua guerra, esses soldados profissionais! Ora, eu posso considerar-me feliz por ter ficado afastado dessa sangueira. Pobre Geoffrey!" Pensou no irmão morto.

- E, no entanto - concluíra a Sra. Quarles depois de uma pausa num certo sentido, eu quisera que Philip tivesse ido à guerra. Oh! não por motivos belicosos ou patrióticos. Mas porque, se me pudessem garantir que ele não morria nem ficava mutilado, teria sido tão bom para ele... violentamente bom, talvez; dolorosamente bom; mas, em qualquer caso, bom. Podia ter-lhe quebrado a concha, podia tê-lo libertado de sua própria prisão. Liberdade sob o ponto de vista emocional; porque o seu intelecto é já bastante livre. Livre demais, talvez, cá para o meu gosto antiquado. - E a mãe de Philip, neste ponto, sorriu com uma pontinha de tristeza. - Livre de ir e vir dentro do mundo humano, em vez de ficar fechado naquela sua indiferença.

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O teu acidente te garantiu uma vida tranquila e desprendida. Em outras palavras, o acontecimento assemelhou-se a ti. Da mesma maneira que a guerra, no que me diz respeito, foi exatamente à minha semelhança. Havia já um ano que eu estava em Oxford, quando ela começou.

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- Eu me recordo... Quando chegou a guerra, de como exultei por ter uma oportunidade de fugir à esterqueira e fazer alguma coisa decente, para variar...

- Pelo Rei e pela pátria - zombou Illidge.

- Pobre Rupert Brooke! A gente sorri agora do que ele escreveu, a respeito do retorno da honra ao mundo. Os acontecimentos fizeram que isso parecesse um pouco cômico.

- Foi uma brincadeira sinistra, mesmo na época em que foi escrita. - disse Illidge.

- Não, não. Àquela época, ela era exatamente o que eu próprio sentia.

- Está claro que era o que tu sentias. Porque eras como Brooke, um membro corrompido e blasé da classe ociosa. Tinhas necessidade duma emoção nova, eis tudo... A guerra e essa famosa "honra" de vocês forneceram-lhes essa emoção.

Spandrell deu de ombros.

- Explica a coisa assim, se queres. Tudo o que posso dizer é que em agosto de 1914 eu queria fazer alguma coisa de nobre. Ter-me-ia sido perfeitamente agradável ser morto.

- "Antes a morte que a desonra", hein?

- Sim, exatamente ao pé da letra. Porque posso te assegurar que todos os melodramas estão perfeitamente de acordo com a realidade. Há certas ocasiões em que as pessoas dizem efetivamente coisas como essa. O único defeito do melodrama é que ele tende a nos fazer crer que as pessoas fazem dessas frases sempre e sempre. Mas infelizmente não é assim. "Antes a morte que a desonra" era exatamente o que eu pensava em agosto de 1914. Sim, se a única possibilidade existente fora da morte fosse o modo de vida estúpido por mim levado, eu preferia morrer...

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Aquela vida, na França, parecia-se com a que eu tinha levado antes da guerra. Apenas era muito mais ignóbil e estúpida, e supinamente falha de qualquer elemento que a pudesse aliviar ou redimir. E depois de um ano de guerra eu lutava desesperadamente para me apegar à minha desonra e evitar a morte.

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- Mas a próxima guerra e a próxima revolução hão de fazer que a questão se torne bastante prática.

- É possível. Mas não devemos contar com as guerras e as revoluções. Porque, se contamos com elas, elas hão de vir na certa.

- Virão, contemos ou não com elas. O progresso industrial significa superprodução, significa a necessidade de conseguir novos mercados, significa a rivalidade internacional, significa a guerra. E o progresso mecânico significa mais especialização e padronização do trabalho, significa divertimentos despersonalizados, feitos para todo mundo, significa uma queda da iniciativa e das faculdades criadoras, significa mais intelectualismo, e uma atrofia progressiva de todos os elementos vitais e fundamentais da natureza humana, significa mais tédio e agitação, significa enfim uma espécie de loucura individual que não pode ter outro resultado senão a revolução social. Contemos ou não com elas, as revoluções e as guerras são inevitáveis, se permitirmos que as coisas continuem o seu curso atual.

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E profetizou guerras de classes, guerras de continentes, o estraçalhamento catastrófico de nossa sociedade já terrivelmente instável.

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Depois, pensem na guerra civilizada. Ela nada tem que ver com a combatividade espontânea. Os homens precisam ser constrangidos por lei e depois excitados pela propaganda, para se baterem. Far-se-ia um trabalho muito mais eficiente em favor da paz se se dissesse aos homens que obedecessem aos reflexos espontâneos de seus instintos belicosos, do que fundando não importa quantas Ligas das Nações.


Mais:
Crome Yellow
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIMWVzRjdDR1FBc3M