domingo, 14 de fevereiro de 2016

Consequências ignoradas

As consequências ignoradas da Primeira Guerra Mundial

(Hans-Hermann Hoppe)

A Primeira Guerra Mundial representou um dos maiores divisores de água da história moderna. Ao seu final, a transformação de todo o mundo ocidental, que havia sido iniciada ainda na Revolução Francesa, foi completada: governos monárquicos e reis soberanos deixaram de existir e deram lugar a governos republicano-democráticos.

Até 1914, existiam apenas três repúblicas na Europa: França, Suíça e, desde 1911, Portugal. E, dentre todas as principais monarquias europeias, apenas a do Reino Unido podia ser classificada como um sistema parlamentar, isto é, um sistema em que o poder supremo estava investido em um parlamento eleito. No entanto, quatro anos depois, após os Estados Unidos terem entrado na guerra europeia e decisivamente determinado o seu resultado, as monarquias praticamente desapareceram, e a Europa, junto com o resto do mundo, adentrou a era do republicanismo democrático.

Na Europa, os Romanovs, Hohenzollerns e Habsburgos, militarmente derrotados, tiveram de abdicar ou renunciar, e a Rússia, a Alemanha e a Áustria tornaram-se repúblicas democráticas com sufrágio universal (masculino e feminino) e com governos parlamentares. Igualmente, todos os recém-criados estados - sendo a Iugoslávia a única exceção - adotaram constituições republicano-democráticas. Na Turquia e na Grécia, as monarquias foram destituídas. E até mesmo naquelas nações onde as monarquias ainda existiam ao menos nominalmente, como na Grã-Bretanha, na Itália, na Espanha, na Bélgica, na Holanda e nos países escandinavos, os monarcas não mais exerciam qualquer poder governamental. O sufrágio adulto universal foi introduzido, e todo o poder estatal foi investido em parlamentos e funcionários "públicos".

Essa mudança histórica mundial - do ancien régime de reis e príncipes à nova era republicano-democrática de governantes popularmente eleitos ou escolhidos - também pode ser caracterizada como a mudança que representou a abolição da Áustria e "do jeito austríaco" e a afirmação dos Estados Unidos e do "jeito americano". E assim é por várias razões.

Em primeiro lugar, a Áustria iniciou a guerra, e os EUA puseram-lhe um fim. A Áustria perdeu, e os EUA venceram. A Áustria era governada por um monarca - o imperador Francisco José -, e os EUA, por um presidente democraticamente eleito - o professor Woodrow Wilson. No entanto, ainda mais importante é a constatação de que a Primeira Guerra Mundial não foi uma guerra tradicional, em que se combatia por objetivos territorialmente limitados, mas sim uma guerra ideológica; e a Áustria e os EUA, respectivamente, eram os dois países que mais claramente personificavam as ideias em conflito - e era assim que as demais partes beligerantes os viam.

A Primeira Guerra Mundial começou como uma tradicional disputa territorial. No entanto, com o prematuro envolvimento e a derradeira entrada oficial dos Estados Unidos em abril de 1917, a guerra tomou uma nova dimensão ideológica. Os EUA foram fundados como uma república, e o princípio democrático, inerente à ideia de uma república, apenas recentemente tornara-se vitorioso - tal vitória decorreu da violenta derrota e da violenta devastação da Confederação secessionista pelo governo da União centralista. Na época da Primeira Guerra Mundial, essa triunfante ideologia de um republicanismo democrático expansionista encontrou a sua perfeita personificação no então presidente dos EUA, Woodrow Wilson.

Sob a administração de Wilson, a guerra europeia tornou-se uma missão ideológica: fazer com que o mundo se transformasse em um lugar seguro para a democracia e livre de governantes dinásticos. Quando, em março de 1917, o czar Nicolau II, um aliado americano, foi forçado a abdicar, sendo estabelecido um novo governo republicano-democrático na Rússia sob Kerensky, Wilson exultou. Com o czar abatido, a guerra finalmente havia se transformado em um conflito puramente ideológico: o bem contra o mal.

Wilson e os seus mais próximos conselheiros de política externa, o coronel House e George D. Herron, não simpatizavam com a Alemanha do kaiser, com a aristocracia e com a elite militar. Mas eles odiavam a Áustria. Erik von Kuehnelt-Leddihn assim caracterizou as visões de Wilson e da esquerda americana:


A Áustria era mais demonizada do que a Alemanha. Ela estava em total contradição com o princípio mazziniano de estado nacional, tendo herdado muitas tradições e muitos símbolos do Sacro Império Romano (a águia de duas cabeças, as cores preta e dourada, entre outros). A sua dinastia uma vez governara a Espanha (outra bête noire). Ela liderou a Contra-Reforma, encabeçou a Santa Aliança, combateu o Risorgimento, suprimiu a rebelião húngara de Kossuth (em cuja homenagem havia um monumento na cidade de Nova York) e apoiou moral e filosoficamente o experimento monarquista no México. Habsburgo - este era exatamente o nome que evocava memórias do Catolicismo Romano, da Armada, da Inquisição, de Metternich, de Lafayette encarcerado em Olmütz e de Silvio Pellico confinado na fortaleza de Spielberg, em Brünn. Tal estado tinha de ser destruído; tal dinastia tinha de desaparecer.

Sendo um conflito cada vez mais ideologicamente motivado, a guerra rapidamente se degenerou em uma guerra total. Em todas as nações da Europa, a economia nacional inteira foi militarizada (socialismo de guerra), e a consagrada e honrada distinção entre combatentes e não-combatentes, e entre vida civil e vida militar, foi abandonada. Por essa razão, a Primeira Guerra Mundial resultou em muito mais baixas de civis - vítimas de inanição e de doença - do que de soldados mortos em campos de batalha.

Ademais, devido ao caráter ideológico da guerra, ao seu término somente eram possíveis a total rendição, a humilhação e a punição do derrotado, e não acordos de paz. Como consequência, a Alemanha teve de desistir da sua monarquia, e a Alsácia-Lorena foi devolvida à França tal como antes da Guerra Franco-Prussiana de 1870-71. A nova república alemã foi onerada com pesadas reparações de longo prazo. A Alemanha foi desmilitarizada, o Sarre alemão foi ocupado pelos franceses, e, no leste, grandes territórios tiveram de ser cedidos à Polônia (Prússia Ocidental e Silésia).

A Alemanha, entretanto, não foi desmembrada e nem destruída. Wilson reservara esse destino para a Áustria. Com a deposição dos Habsburgos, todo o Império Austro-Húngaro foi despedaçado. Para coroar a política externa de Wilson, dois novos e artificiais estados, Tchecoslováquia e Iugoslávia, foram extraídos do antigo Império. A Áustria, por séculos uma das grandes potências europeias, foi maciçamente reduzida em tamanho, limitando-se agora ao seu pequeno território central de língua alemã; e, como outro dos legados de Wilson, a agora pequena Áustria foi obrigada a entregar sua província inteiramente alemã do Tirol do Sul (Alto Ádige ou Bolzano) - estendendo-se até o Passo do Brennero - à Itália.

Desde 1918, a Áustria desapareceu do mapa do poder político internacional. Em seu lugar, os Estados Unidos emergiram como a potência líder do mundo. A era americana - a pax Americana - começara. O princípio do republicanismo democrático havia triunfado. E ele triunfaria de novo ao final da Segunda Guerra Mundial. E uma vez mais - ou ao menos assim pareceu - com o colapso do Império Soviético nos últimos anos da década de 1980 e no início da década de 1990. Para alguns observadores contemporâneos, o "Fim da História" havia chegado. A ideia americana de democracia universal e global finalmente estava totalmente implementada.

Assim, a Áustria dos Habsburgos e a prototípica experiência pré-democrática austríaca se tornaram uma mera curiosidade histórica. Para ser exato, não é que a Áustria não mais tenha alcançado qualquer reconhecimento. Até mesmo os intelectuais e artistas pró-democracia, de qualquer campo das atividades intelectuais e artísticas, não podiam ignorar o enorme nível de produtividade da cultura austro-húngara e, em particular, da cultura vienense. Com efeito, a lista de grandes nomes associados à Viena do fim do século XIX e do início do século XX parece infinita.

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No entanto, e curiosamente, essa elevada produtividade intelectual e cultural raramente foi correlacionada pelos estudiosos como decorrente da tradição pré-democrática da monarquia dos Habsburgos. A incrível efervescência cultural e intelectual da Viena do final do século XIX e início do século XX raramente é correlacionada com o ambiente criado pela monarquia dos Habsburgos. Em vez disso, nos raros casos em que não é considerada uma mera coincidência, a produtividade da cultura austro-vienense é apresentada, de forma "politicamente correta", como sendo prova dos positivos efeitos sinergéticos do multiculturalismo e de uma sociedade multiétnica.

Por outro lado, já desde o final do século XX, acumulam-se crescentes evidências de que, em vez de assinalar o fim da história, o sistema político-democrático imposto ao mundo pelos EUA está mergulhado em uma crise profunda. Desde o fim da década de 1960 e começo da década de 1970, a renda salarial real nos Estados Unidos e na Europa Ocidental estagnou-se e, em alguns casos, até mesmo caiu. No Oeste Europeu em particular, as taxas de desemprego só fizeram aumentar. Os gastos governamentais e a dívida pública dispararam em todos os países, alcançando patamares astronômicos, em muitos casos excedendo o próprio Produto Interno Bruto (PIB) de um país. Similarmente, os sistemas de Previdência Social (ou seguridade social) em todos os lugares estão à beira da falência.

Ademais, o colapso do Império Soviético não representou exatamente um triunfo da democracia; apenas comprovou a impossibilidade prática do socialismo. Mais ainda: tal colapso trouxe embutido em si um alerta contra o sistema ocidental de socialismo democrático (em vez de socialismo ditatorial). No que mais, em todo o hemisfério ocidental, divisões, separatismos e secessões nacionais, étnicas e culturais estão crescendo. As criações democráticas e multiculturais de Wilson - a Iugoslávia e a Tchecoslováquia - se fragmentaram. Em todo o Ocidente, em menos de um século de democracia perfeitamente completa, os resultados são estes: degeneração moral, desintegração social e familiar e decadência cultural na forma de taxas crescentes de divórcio, de filhos bastardos, de aborto e de criminalidade. Em consequência de uma quantidade - ainda em expansão - de leis e políticas antidiscriminatórias, multiculturais e igualitaristas, todos os poros da sociedade ocidental foram afetados pela interferência governamental e pela integração forçada. Consequentemente, as tensões e hostilidades raciais, étnicas e culturais - bem como as inquietações sociais - têm crescido dramaticamente.

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Fica a pergunta: o que teria acontecido se, de acordo com suas próprias promessas feitas durante sua campanha de reeleição, Woodrow Wilson tivesse mantido os Estados Unidos fora da Primeira Guerra Mundial?

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George F. Kennan, embaixador americano na URSS e a própria encarnação do establishment, escrevendo em 1951:


Contudo, hoje, se fosse oferecida a oportunidade de ter de volta a Alemanha de 1913 - uma Alemanha governada por pessoas conservadoras, mas relativamente moderadas, sem nazistas e sem comunistas, uma Alemanha vigorosa, unida e não-ocupada, cheia de energia e confiança, capaz de fazer parte de uma frente que contrabalançaria o poder russo na Europa... Bem, haveria objeções a isso de muitos lugares, e isso não faria todo mundo feliz; porém, de várias maneiras, e em comparação com os nossos problemas de hoje, isso não seria tão ruim. Agora, pense no que isso significa. Quando verificamos o saldo total das duas guerras, nos termos dos seus objetivos declarados, há uma enorme a dificuldade em perceber e discernir algum ganho.


Fonte:
http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1893

Mais:
http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1913