domingo, 31 de janeiro de 2016

A montanha mágica

Trechos de A Montanha Mágica (1924), de Thomas Mann.


[Settembrini] Demonstrou imediatamente estar a par dos acontecimentos importantes, que julgou com otimismo, uma vez que as coisas estavam tomando um rumo favorável para a civilização. A atmosfera geral da Europa estava cheia de pensamentos pacíficos e de planos de desarmamento. A ideia democrática achava-se em marcha.

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- Ora, a Rússia precisava obter algum descanso, depois do seu pequeno desastre no Oriente.

- Acho muito feio, da sua parte, zombar do desejo de aperfeiçoamento social que sente a humanidade. O povo que contrariasse um esforço desse gênero indubitavelmente cairia no ostracismo moral.

- De que serviria a política se não desse a uns e outros uma oportunidade para se comprometer moralmente?

- O senhor está adotando a causa do pangermanismo?

Naphta encolheu os ombros, cujo nível era um tanto desigual. Além da sua fealdade parecia mesmo um pouco torto. Não se dignou responder.

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- Trata-se dos derradeiros e muito débeis arrancos de um restinho de instinto de autoconservação, que ainda sobra a um já condenado sistema do mundo. A catástrofe virá e deve vir; está avançando por todos os caminhos e de todos os modos. Considere, por exemplo, a política britânica. A necessidade que sente a Inglaterra de garantir a esplanada da fortaleza indiana é legítima. Mas quais são as consequências? Eduardo sabe tão bem como o senhor e eu que os governantes de Petersburgo têm de desforrar-se do revés sofrido na Manchúria e precisam urgentemente desviar o perigo da revolução. Mesmo assim orienta - e não tem outra escolha - o expansionismo russo em direção à Europa, desperta rivalidades adormecidas entre Petersburgo e Viena...

- Ora, Viena! O senhor se preocupa com esse obstáculo ao progresso do mundo provavelmente por reconhecer, no império caduco de que ela é a capital, a múmia do Santo Império Romano-Germânico.

- E eu acho que o senhor é russófilo, provavelmente devido a uma simpatia humanística pelo césaro-papismo.

- Senhor, até mesmo do Kremlin a democracia pode esperar mais do que da corte de Viena, e é vergonhoso para o país de Lutero e de Gutenberg que...

- Talvez não seja somente vergonhoso, mas também estúpido. No entanto, tal estupidez é igualmente um instrumento da fatalidade...

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Nos dias das primeiras mobilizações e da primeira declaração de guerra adquirira o hábito de estender ambas as mãos ao visitante e de apertar as do nosso jovem simplório, como se lhe quisesse falar, senão ao cérebro, pelo menos ao coração. - Meu amigo! - dizia o italiano. - A pólvora e a imprensa, sim, é incontestável que foram inventadas por vocês. Mas se o senhor pensa que nós marcharemos contra a Revolução... Caro...

Durante os dias de expectativa, os dias mais carregados de eletricidade, enquanto os nervos da Europa se achavam num verdadeiro leito de Procusto, Hans Castorp não foi ter com o Sr. Settembrini. Os jornais cheios de horrores chegavam agora diretamente da planície ao seu compartimento de sacada, empestando com o seu cheiro de enxofre a sala de refeições e mesmo os quartos dos doentes graves ou moribundos.

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Eles têm sido procurados, esses companheiros de armas, a fim de pôr o ponto final num combate que já se prolongou pelo dia inteiro e visa à reconquista das posições nas colinas e das aldeias em chamas, que se acham situadas atrás delas e dois dias antes haviam sido abandonadas ao inimigo. É um regimento de voluntários, composto de jovens, na maioria estudantes, com pouco tempo na frente de batalha. Foram avisados em plena noite, viajaram de trem até a madrugada e marcharam através da chuva até a tarde por caminhos péssimos, que nem eram caminhos. As estradas estavam atravancadas de veículos, de modo que tiveram de avançar por campos e pântanos, sete horas a fio, com o equipamento completo.

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Finalmente alcançaram a meta; seu sangue jovem tem suportado todas as fadigas; os corpos, excitados e já exaustos, mas ainda mantidos num estado de tensão pelas mais íntimas reservas vitais, não se preocupam com a alimentação nem com o sono de que foram privados. Os rostos molhados, salpicados de lodo, emoldurados pela correia, ardem sob os capacetes revestidos de pano cinzento e revirados pela corrida. Estão inflamados pelo esforço e também pelo aspecto das baixas que sofreram durante a marcha através do bosque alagado. O inimigo, sabendo que eles estão próximos, lançou sobre o seu caminho uma barragem de Schrapnells e de granadas de grosso calibre; já no meio do bosque, estes se estilhaçaram, irrompendo nos seus grupos, e agora açoitam a vasta campina arada, uivando, vomitando chamas, arrojando terras para todos os lados.

E eles devem passar por isso, esses três mil rapazotes febris; são os reforços que têm de decidir, com suas baionetas, o assalto às trincheiras cavadas diante e atrás da cadeia de colinas e às aldeias incendiadas; cabe-lhes levar o ataque até determinado ponto que se encontra assinalado na ordem que seu chefe traz no bolso. Há três mil deles, para que sobrem dois mil, quando chegarem às colinas e às aldeias, e aí está a explicação de serem em tão grande número. Formam um só corpo, composto de tal maneira que mesmo depois de graves perdas possam ainda agir, vencer e saudar o triunfo com um hurra de milhares de vozes, sem se importar com aqueles que se houverem desagregado, saindo de forma. Muitos já fizeram isso, não aguentando a marcha forçada para a qual eram demasiado jovens e fracos. Empalideciam cada vez mais; cambaleavam; cerrando os dentes, exigiam de si energias de homens, e todavia ficavam para trás. Arrastavam-se ainda por algum tempo ao lado da coluna em marcha; pelotão após pelotão ultrapassava-os, e por fim desaparecia, ficando estendidos onde não era bom deitar-se. Depois, veio o bosque despedaçado. Mesmo assim há ainda muitos que dele saem enxameando; três mil podem suportar uma boa sangria e continuam sendo uma multidão. Já estão inundando a terra açoitada pela chuva, a estrada, o atalho, os campos lamacentos. Nós, as sombras observadoras, à beira do caminho, achamo-nos entre eles. Na orla do bosque todos calam a baioneta com manobras destras. Os clarins clamam com insistência, os tambores rufam, ribombam num baixo profundo, e os homens, soltando gritos roucos, precipitam-se para a frente, o melhor que podem, como num pesadelo, com os pés chumbados pelos torrões que se grudam nas toscas botas.

Atiram-se de bruços, para esquivar-se aos projéteis que se aproximam ululando. Novamente se levantam, avançam às pressas, encorajando-se com estridentes brados juvenis, cada vez que escapam ilesos. São alvejados, caem, agitando os braços, com um tiro na testa, no coração, nas entranhas. Jazem, com as faces na lama, imóveis já. Jazem, com as cabeças enterradas no barro, as costas despegadas da mochila, e agarram o ar com ambas as mãos. Mas o bosque envia outros que se atiram, que saltam, gritam ou avançam mudos, a passo trôpego, por entre os feridos.

Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e baionetas, com as capas e as botas enlameadas! [...] jazem ali, com o nariz no barro bombardeado. Que façam isso com alegria, ainda que transidos de medo e cheios de saudades da mãe, é assunto à parte, que nos orgulha e envergonha, mas nunca nos deveria induzir a colocá-los nesta situação.

Eis aí o nosso amigo, Hans Castorp! Já de longe o reconhecemos pela barbicha que deixou crescer, enquanto comia à mesa dos "russos ordinários". Arde e está ensopado como os demais. Corre com os pés pesados, agarrando o fuzil com o braço caído. Vejam só: pisou na mão de um camarada que se desagregou; com a bota ferrada afunda essa mão no solo lamacento, salpicado de galhos lascados. E todavia é ele!

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Caiu. Não, atirou-se ao chão, porque um cão dos infernos chega uivando, um enorme obus, um asqueroso pão de açúcar, saído das trevas. Acha-se estendido, comprimindo o rosto no barro frio com as pernas escancaradas e os pés torcidos, colados ao chão. O produto de uma ciência barbarizada abate-se como o Diabo em pessoa a trinta passos dele, penetrando obliquamente no solo, onde explode com espantosa violência e joga à altura de uma casa um jorro de terra, fogo, chumbo, ferro e de humanidade despedaçada; pois nesse lugar havia dois jovens estendidos, eram amigos que se haviam atirado um ao lado do outro, no momento de perigo, e agora estão mesclados, sumidos.

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Adeus - para a vida ou para a morte! Tens poucas probabilidades a teu favor. O macabro baile ao qual te arrastaram durará ainda vários anos malignos. Não queremos apostar muita coisa na tua possibilidade de escapar. Para falar com franqueza, não sentimos grandes escrúpulos ao deixar indecisa essa questão. Certas aventuras da carne e do espírito, sublimando a tua singeleza, fizeram teu espírito sobreviver ao que tua carne dificilmente poderá resistir. Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de "rei", viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?


Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIQjNLV3NON3Ffb00