domingo, 27 de setembro de 2015

A consciência de Zeno

Trechos de A Consciência De Zeno (1923), de Italo Svevo.


26 de junho de 1915. A guerra atingiu-me afinal! Eu, que andava a ouvir as histórias de guerra como se se tratasse de um conflito de outros tempos sobre o qual era divertido falar, mas que seria tolice deixar-me preocupar, eis que me vi metido nela sem querer e ao mesmo tempo surpreso por não haver percebido antes que mais cedo ou mais tarde acabaria envolvido. Era como se vivesse tranquilamente num prédio cujo andar térreo estava em chamas e eu não imaginasse que mais cedo ou mais tarde todo o edifício acabaria por arder.

A guerra apoderou-se de mim, sacudiu-me como um trapo, privou-me de uma só vez de toda a minha família e até de meu administrador. De um dia para o outro, eu era um homem totalmente diferente, ou, para ser mais exato, todas as minhas vinte e quatro horas foram inteiramente diversas. Desde ontem estou um pouco mais calmo porque finalmente, depois de esperar um mês, tive as primeiras notícias de minha família. Estão sãos e salvos em Turim, quando eu já perdia todas as esperanças de revê-los.

Devo passar o dia inteiro no escritório. Não tenho muito o que fazer, mas é que os Olivi, como cidadãos italianos, tiveram que partir e todos os meus poucos empregados, os melhores, foram convocados para um lado ou outro, daí ter eu que permanecer vigilante em meu posto. À noite vou para casa carregando o peso das grandes chaves do armazém. Hoje, que me sinto bem mais calmo, trouxe comigo para o escritório este manuscrito, que pode ajudar-me a passar o tempo sem fim.

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Caminho pelas ruas de nossa mísera cidade, sentindo-me um privilegiado que não vai à guerra e que encontra todos os dias aquilo que lhe agrada para comer. Em comparação com os demais, sinto-me tão feliz - principalmente depois que tive notícias dos meus - que seria provocar a ira dos deuses se quisesse estar perfeitamente bem.

A guerra e eu nos encontramos de um modo violento, que agora me parece um tanto ridículo.

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[O pai de Teresina] Alcançando-me, perguntou em voz muito baixa:

- O senhor não soube nada? Dizem que arrebentou a guerra.

- Ora essa! Claro que sabemos! Já faz um ano - respondi.

- Não falo dessa - disse impaciente. - Falo da guerra com... - e fez um sinal em direção à fronteira italiana vizinha. - O senhor não sabe nada? - Ficou a me olhar ansioso pela resposta.

- Há de compreender - disse-lhe com toda a segurança - que se nada sei é porque realmente não há nada. Venho de Trieste e as últimas novidades que soube davam a possibilidade de guerra como definitivamente afastada. Em Roma haviam derrubado o ministério que queria a guerra e chamaram Giolitti.

Ele sossegou imediatamente.

- Então estas batatas que estamos cobrindo e que tanto prometem hão de ser nossas! O que não falta por aí é gente boateira! - Com a manga da camisa enxugou o suor que lhe corria da testa.

Vendo-o tão contente, tratei de fazê-lo ainda mais feliz. Gosto de ver as pessoas felizes. Por isso falei coisas de que verdadeiramente não gosto de recordar. Afirmei-lhe que, mesmo no caso de rebentar a guerra, os combates não se travariam ali. Em primeiro lugar haveriam de bater-se no mar, e na Europa não faltavam campos de batalha para quem quisesse. Havia a Flandres e vários departamentos franceses. Além disso, ouvira dizer - já não sabia de quem - que havia no mundo tal carência de batatas que estas eram colhidas cuidadosamente até nos campos de batalha.

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Tornou-me ainda mais nervoso um encontro casual com um pelotão de soldados que marchava pela estrada em direção a Lucinico. Eram soldados nada jovens e com fardamento e apetrechos ordinários. Pendia-lhes da cintura aquela baioneta longa que em Trieste chamávamos de durlindana e que os austríacos, no verão de 1915, deviam ter exumado de velhos depósitos.

Por algum tempo caminhei à retaguarda deles, ansioso por chegar a casa. Porém, como me desagradasse o cheiro azedo que emanava deles, acabei por diminuir o passo. Minha inquietação e minha pressa eram injustificadas. [...] Acelerei o passo para chegar finalmente ao meu café da manhã. Foi aí que começou a minha aventura. Numa curva do caminho, fui detido por uma sentinela que me gritou:

- Zurück! - pondo-se em posição de tiro. Quis responder-lhe em alemão, já que me havia gritado nessa língua, mas de alemão a sentinela só conhecia aquela palavra que repetia sempre mais ameaçador.

Era necessário voltar zurück (para trás) e eu, olhando sempre em sua direção, com medo de que ele, para se fazer compreender melhor, disparasse, retirei-me com certa rapidez de que não descuidei nem mesmo quando o soldado desapareceu de vista.

Contudo, não renunciei logo a voltar imediatamente para a minha vila. Pensei que, galgando a colina à minha direita, poderia contornar a sentinela, saindo muito à frente.

A subida não foi difícil, principalmente porque o capim alto estava curvado pelas pisadas de muita gente, que devia ter passado por ali antes de mim, sem dúvida obrigada como eu por causa da proibição de transitar pela estrada. Caminhando, readquiri minha segurança e pensei que a primeira coisa que ia fazer, quando chegasse a Lucinico, seria protestar junto ao burgomestre pelo tratamento que eu fora constrangido a sofrer. Se permitissem que os veranistas fossem tratados daquela forma, com pouco ninguém mais visitaria Lucinico.

Contudo, ao atingir o alto da colina, tive a desagradável surpresa de vê-la ocupada pelo pelotão dos soldados que cheiravam a azedo. Muitos deles repousavam à sombra de uma cabana de camponês que eu conhecia desde muito e que sabia inteiramente abandonada; três pareciam de guarda, mas não do lado por onde eu subira, e alguns outros formavam um semicírculo em torno a um oficial que lhes transmitia instruções, utilizando-se de um mapa que trazia à mão.

Eu não dispunha nem mesmo de chapéu com que servir-me para cumprimentá-los. Inclinando-me várias vezes e com o mais belo dos sorrisos, encaminhei-me em direção ao oficial que, vendo-me, parou de falar aos soldados e pôs-se a olhar-me. Os cinco "mamelucos" que o circundavam regalaram-me com toda a sua atenção. Andando sob todos aqueles olhares e por um terreno não plano, não era nada fácil mover-me. O oficial gritou:

- Was will der dumme kerl hier? (Que vem fazer aqui este idiota?)

Estupefato de que me ofendessem sem qualquer provocação minha, quis demonstrar virilmente que compreendera a ofensa, mas ainda com a discrição que o caso me impunha, desviei da estrada e tentei chegar à encosta que me levaria a Lucinico. O oficial pôs-se a gritar que, se desse mais um passo, mandaria abrir fogo sobre mim. Tornei-me muito cortês e daquele dia até este em que escrevo jamais deixei de demonstrar cortesia. Era uma barbaridade ser constrangido a tratar com um tipo semelhante; pelo menos, porém, ele tinha a vantagem de falar corretamente o alemão. Recordando essa vantagem, tornou-se mais fácil para mim falar-lhe com brandura. Se aquela toupeira não compreendesse o alemão, eu decerto estaria perdido.

Pena é que eu não falasse fluentemente essa língua pois, do contrário, ter-me-ia sido fácil fazer rir o azedo senhor. Contei-lhe que em Lucinico esperava-me um café da manhã do qual eu estava separado apenas por seu pelotão.

Ele riu afinal, juro que sim. Riu sempre a praguejar e nem teve a paciência de me deixar concluir. Declarou que alguém haveria de beber meu café em Lucinico e quando soube que além do café me esperava ainda minha mulher, gritou:

- Seine frau wird auch nahrung für andere. (Sua mulher também será comida por outros.)

Ele estava agora com melhor humor que o meu. Pareceu-me em seguida que se arrependera de me ter dito algo que, sublinhado pelo riso clamoroso dos cinco mamelucos, pudesse parecer ofensivo. Pôs-se sério e explicou que eu não devia esperar regressar aquele dia a Lucinico e, mesmo a título de amizade, me aconselhava a não lhe perguntar mais nada, porque bastaria uma pergunta qualquer para comprometer-me.

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[O cabo] Perguntou-me se tinha notícias da guerra e se era verdade que estava iminente a intervenção italiana. Olhava-me ansioso, à espera da resposta. Com que então nem mesmo eles que faziam a guerra sabiam ao certo se ela existia ou não!

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A julgar pelas notícias que lhe dera, achava ele que as eventualidades que me impediam de retornar a casa seriam levantadas no dia seguinte. Mas até lá me aconselhava a ir ao Platzkommando de Trieste, onde talvez pudesse obter uma permissão especial.

- Ir a Trieste? - perguntei apavorado. - A Trieste, sem casaco, sem chapéu e sem ter tomado o café da manhã?

A julgar pelo que sabia o cabo, enquanto falávamos, um forte cordão de infantaria fechava o trânsito para a Itália, criando uma fronteira nova e intransponível. Com sorriso superior afirmou que, segundo ele, o caminho mais curto para Lucinico era o mesmo que conduzia a Trieste.

À força de ouvi-lo dizer, resignei-me e rumei para Gorizia, pensando poder ali pegar o trem do meio-dia para Trieste.

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Corri, no entanto, à agência postal para telefonar a Augusta. De casa, contudo, ninguém me respondeu.

O empregado, um homenzinho de barbicha rala que parecia, na sua pequenez e severidade, algo de ridículo e obstinado - que é tudo quanto dele me lembro -, ouvindo-me praguejar furioso diante do aparelho mudo, aproximou-se de mim e disse:

- Hoje já é a quarta vez que Lucinico não responde.

[...] Foram necessários uns dez minutos para que eu compreendesse. Já não havia dúvidas para mim. Lucinico encontrava-se, ou em poucos minutos se encontraria, na linha de fogo.

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Agora que sei minha família sã e salva, a vida que levo não me desagrada. Não tenho muito o que fazer, mas não posso afirmar que esteja inerte. Não se deve comprar nem vender. O comércio renascerá quando vier a paz. Olivi mandou-me conselhos da Suíça. Se soubesse como seus conselhos destoam deste ambiente de todo mudado! Quanto a mim, no momento nada faço.