domingo, 25 de maio de 2014

Economia de guerra

Trechos do capítulo 6 de Intervencionismo - Uma Análise Econômca (1940), de Ludwig von Mises.


A economia de mercado é incompatível com a guerra total. Na guerra de soldados apenas os soldados lutam; para a grande maioria, a guerra é apenas um sofrimento passageiro e não um objetivo a ser alcançado. Enquanto os exércitos combatem entre si, os cidadãos, os fazendeiros e os trabalhadores tentam levar adiante as suas tarefas habituais.

O primeiro passo para que a guerra de soldados voltasse a ser a guerra total foi dado com a introdução do serviço militar compulsório. Gradualmente foi deixando de haver uma diferença entre soldados e cidadãos. A guerra deixava de ser um assunto de mercenários; passava a envolver qualquer pessoa que tivesse aptidão física. O slogan "uma nação em armas", em princípio, era apenas um programa que, por razões financeiras, não podia ser inteiramente implementado. Somente uma parte da população masculina apta recebia treinamento militar e era colocada à disposição das forças armadas. Mas, uma vez que se entra por esse caminho não se consegue parar pela metade. Eventualmente, a mobilização militar acabava por absorver até mesmo os homens que eram indispensáveis para abastecer os combatentes com armas e alimentos. Tornava-se necessário diferenciar entre ocupações essenciais e não essenciais. Os homens cuja atividade fosse essencial para o esforço de guerra podiam ser dispensados de integrar as tropas de combate. Por essa razão a força de trabalho disponível era colocada nas mãos dos comandantes militares. O serviço militar compulsório pretendia que todo cidadão fisicamente apto integrasse as forças armadas; só os doentes, os fisicamente incapacitados, os velhos, as mulheres e as crianças podiam ficar isentos. Mas, quando se percebe que uma parte dos indivíduos aptos está sendo usada na indústria para executar tarefas que poderiam ser executadas por velhos e por jovens, pelos menos capazes e pelas mulheres, deixa de haver uma razão para diferenciar, no serviço compulsório, os aptos dos fisicamente incapacitados. Assim sendo, o serviço militar compulsório acaba por conduzir todos os cidadãos, homens e mulheres, que possam trabalhar para o trabalho compulsório. O comandante-chefe, que exerce o poder sobre toda a nação, coloca os menos aptos para trabalhar nas atividades de abastecimento, a fim de poder mandar para a frente de batalha o maior número possível de aptos, sem colocar em risco o abastecimento das forças armadas. O comandante-chefe passa então a ser quem decide o que deve ser produzido, e como. Também decide como os produtos devem ser usados. A mobilização torna-se total; a nação e o Estado tornam-se um exército; a economia de mercado é substituída pelo socialismo de guerra.

Nesse particular, é irrelevante se aos antigos empresários for concedida uma posição privilegiada nesse sistema de socialismo de guerra. Podem ser chamados de gerentes e ocupar posições elevadas nas fábricas, que agora estão todas a serviço das forças armadas. Podem receber rações mais generosas do que a que recebem os que eram apenas funcionários ou operários. Já não são mais empresários. São gerentes a quem está sendo dito o quê e como produzir, onde e por que preços comprar os meios de produção e a quem e por que preços vender os produtos.

Se a paz for considerada apenas como uma trégua, durante a qual a nação deva se armar para a próxima guerra, é necessário, em tempo de paz, colocar a produção em ritmo de guerra, bem como organizar e preparar as forças armadas. Seria, portanto, ilógico adiar a mobilização total até a eclosão das hostilidades. A única diferença entre guerra e paz, nesse contexto, é que em tempos de paz um certo número de homens, que durante a guerra estaria na frente de batalha, ainda estaria trabalhando na produção doméstica. A transição de tempos de paz para tempos de guerra consistiria, portanto, apenas em deslocar esses homens da produção doméstica para a frente de batalha.

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Uma das lendas anticapitalistas mais populares quer nos fazer crer que a indústria de armamento foi a grande responsável pelo ressurgimento do espírito bélico. O imperialismo e a guerra total seriam, supostamente, fruto da propaganda de guerra levada a efeito por escritores contratados pelos fabricantes de armas. A Primeira Guerra Mundial teria começado porque Krupp, Schneider-Creuzot, Du Pont e J. P. Morgan queriam obter grandes lucros. Para que tal catástrofe não ocorresse de novo, acreditavam ser necessário impedir que a indústria de armamentos tivesse lucros.

Foi com base nesse raciocínio que o governo [Leon] Blum estatizou a indústria bélica francesa. [...]

Na Inglaterra, também, o governo estava mais preocupado em impedir os lucros decorrentes de uma guerra do que em equipar da melhor maneira possível as forças armadas. Como exemplo pode ser mencionado o estabelecimento de uma taxa de 100% sobre os lucros auferidos em virtude da guerra.

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A mentalidade anticapitalista proclama: "A questão essencial é exatamente essa: fazer negócios propiciados pela guerra é impatriótico. Enquanto nós somos obrigados a deixar nossas famílias, nosso emprego e arriscamos a nossa vida na frente de batalha, os capitalistas querem manter os seus lucros obtidos com a guerra. Deveriam ser forçados a trabalhar desinteressadamente pelo seu país, da mesma maneira que somos obrigados a lutar por ele." Esses argumentos colocam o problema na esfera da ética. Mas a questão não é de natureza ética, e sim de conveniência.

Quem detestar a guerra por razões morais e considerar que mutilar e matar pessoas é um ato desumano, devia esforçar-se para substituir ideologias que conduzem à guerra por ideologias que proporcionem uma paz duradoura. Entretanto, se uma nação pacífica for atacada e tiver que se defender, só uma coisa importa: a defesa deve ser organizada da forma mais rápida e mais eficiente possível; os soldados devem ser equipados com as melhores armas. Isso só pode ser conseguido se o funcionamento da economia de mercado não for obstruído. Foi a indústria de armamentos privada, com seus grandes lucros, que equipou e abasteceu tão bem os exércitos para que eles se tornassem vitoriosos. Foi a experiência real, no século dezenove, em combates travados utilizando-se armamentos ineficientes fabricados pelo Estado, que levou os governos a fecharem a maior parte das fábricas estatais de armamentos. Em nenhum outro momento a eficiência e a capacidade produtiva dos empresários pôde ser tão bem provada quanto durante a Primeira Guerra Mundial. Só a inveja e o ressentimento irracional podem levar as pessoas a condenar o lucro dos empresários cuja eficiência possibilitou a vitória na guerra.

Quando as nações capitalistas, em tempos de guerra, deixam de utilizar a superioridade industrial que seu sistema econômico lhes proporciona, sua capacidade de resistir e suas chances de vitória ficam consideravelmente reduzidas. Que algumas consequências da guerra sejam consideradas injustas é perfeitamente compreensível. O fato de empresários enriquecerem com a produção de armas é apenas uma das situações insatisfatórias e injustas decorrentes da guerra. Mas também é "injusto" que os soldados arrisquem sua vida e sua saúde e venham a morrer no campo de batalha, desconhecidos e sem o devido reconhecimento, enquanto os generais e oficiais superiores, protegidos e sem correr riscos, recolhem a glória e impulsionam suas carreiras. Exigir a eliminação dos lucros de guerra é tão pouco razoável quanto exigir que os generais e seu estado-maior, os cirurgiões e as pessoas que trabalham no esforço de guerra fora do teatro de operações tenham que executar suas tarefas nas mesmas condições de perigo e dificuldade a que estão expostos os soldados na frente de batalha. Não é aos lucros empresariais decorrentes da guerra que devemos fazer objeção. É à guerra em si que devemos objetar.

Essas opiniões sobre os lucros de guerra evidenciam a existência de inúmeros equívocos sobre a natureza da economia de mercado. Todas as empresas que em tempos de paz já estavam aparelhadas para produzir armas ou outros suprimentos bélicos passam, a partir do primeiro dia de guerra, a trabalhar para atender às encomendas do governo. Mas mesmo à plena capacidade, essas fábricas só têm condições de produzir uma pequena parte das necessidades de guerra. Torna-se necessário, portanto, transformar fábricas que antes não estavam aparelhadas para produzir armamentos em fábricas de material bélico, e até mesmo de construir novas fábricas para esse propósito. Ambas as hipóteses implicam novos investimentos. O retorno desses investimentos depende não apenas das primeiras encomendas feitas pelo governo, mas também das encomendas que serão feitas ao longo da guerra. Se a guerra acabar sem que esses investimentos tenham sido inteiramente depreciados, seus proprietários terão prejuízos, e não lucros.



Mais:
http://mises.org/library/mises-wartime