domingo, 6 de abril de 2014

O dia em que a paz acabou

VEJA
16 de dezembro de 1998

O dia em que a paz acabou

Há oitenta anos terminava a I Guerra Mundial, a mãe de todas as guerras do século.

(Maurício Cardoso)

Oitenta anos depois do fim da I Guerra Mundial, a principal pergunta a respeito do conflito continua sem resposta: por que o mundo foi à luta em 1914? O estopim da explosão que incendiaria a Europa foi um fato que não guarda proporção com as dimensões do cataclismo que se seguiu: o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, por um fanático nacionalista sérvio durante sua visita à cidade de Sarajevo, na Bósnia. Não havia então uma ameaça à liberdade ou à humanidade como o nazismo, o detonador da II Guerra Mundial, vinte anos mais tarde. O equilíbrio do poder militar na Europa ou as aspirações imperialistas das grandes potências, as razões comumente aceitas para explicar a explosão, não justificariam tampouco o banho de sangue que se seguiu. A conclusão a que se chega é que se lutou muito por quase nada.

Quando os soldados alemães marcharam para a guerra, no dia 1º de agosto de 1914, mais pareciam um bando de colegiais partindo para um piquenique. "Estarão todos de volta antes que comecem a cair as folhas das árvores", despediu-os o kaiser Guilherme II, imaginando que em quatro meses tudo estaria terminado, naquele que seria um dos mais graves erros de avaliação da História. A maioria de seus soldados simplesmente não voltou, a guerra se estendeu por quatro anos deixando um rastro de destruição por toda a Europa e um saldo aterrador de 15 milhões de mortos entre militares e civis. Tudo por nada.

As grandes potências europeias se preparavam para a guerra há anos. Em seu livro The Arming of Europe and the Making of the First World War (A Militarização da Europa e a Deflagração da I Guerra Mundial) o historiador David Herrmann mostra que a Alemanha atingira o auge de seu poderio bélico em 1914 e provocou o conflito para não ser alcançada por seus rivais, Inglaterra, França e especialmente a Rússia. Vista oitenta anos depois de terminada, percebe-se que se pagou um preço altíssimo pelas ambições e vaidades daquele momento. A I Guerra é lembrada como o primeiro conflito moderno da História que destruiu com brutalidade o romantismo das batalhas e colocou o cidadão comum em contato direto com a crua realidade do front. Novas armas como a metralhadora, os gases venenosos, o tanque, o torpedo, o avião, o submarino iriam ser testados pela primeira vez antes que se pudesse avaliar seu poder de destruição. Apenas no primeiro dia da batalha de Somme a Inglaterra perdeu 60.000 soldados. Durante toda a Guerra do Vietnã, meio século depois, os Estados Unidos perderam 58.000 homens, o suficiente para levantar a opinião pública americana contra a insensatez da guerra.

Mas aqueles eram outros tempos. "Em 1914, 'glória' era uma palavra dita sem constrangimento e a honra era um conceito conhecido, em que as pessoas acreditavam", escreveu em Canhões de Agosto a historiadora americana Barbara Tuchman, uma da maiores autoridades em I Guerra Mundial. Pela glória e pela honra, a fina flor da juventude europeia engajou-se na luta e nela pereceu. "Apenas um terço dos soldados franceses saiu da guerra incólume. Um quarto dos alunos de Oxford e Cambridge que serviam o Exército britânico em 1914 foi morto", contabiliza o historiador Eric Hobsbawm no livro Era dos Extremos. Em dois anos, a Rússia perdeu 3,8 milhões de homens. Em 1921, a população da França tinha 400.000 pessoas menos do que dez anos antes. A destruição atingiu toda a Europa, inclusive a Inglaterra, no outro lado do Canal da Mancha.

Toda uma geração havia sido ceifada com uma brutalidade que não deixava dúvidas. Não havia nada de bonito na guerra, como chegou a escrever em um poema o poeta francês Guillaume Apollinaire, um dos combatentes caídos no conflito. As trincheiras, onde os soldados passaram a viver, eram imundas e enlameadas, infestadas de insetos e ratos. A morte era banal e os soldados, tratados como munição que podia ser "queimada", na chamada guerra de "desgaste". "A vitória é uma simples questão de matemática", dizia o general Eric von Falkenhayn, comandante do Estado-Maior alemão. "Como há mais alemães do que franceses, no fim sobrarão os alemães." Os aliados não agiam diferentemente e os franceses só mudaram de opinião quando seus soldados se amotinaram contra a estupidez com que eram tratados.

O conflito distribuiu novos papéis pelo mundo. A mulher, que ainda lutava para ter o direito de votar, foi chamada a ocupar o lugar do homem na linha de produção das fábricas e chegou ao front. Apenas entre americanas e inglesas alistaram-se 90.000, a maioria para cuidar dos hospitais de campanha. O mapa da Europa foi redesenhado. Tanto quanto aniquilar o império alemão, o Tratado de Versalhes esmerou-se em isolar o novo inimigo que surgia na Rússia: o comunismo. Nos dois casos o tiro saiu pela culatra. A humilhação da Alemanha, imposta pelo Tratado, fez germinar o nazismo que detonaria a II Guerra Mundial. O comunismo também teve seu caminho aberto pelas feridas russas na Grande Guerra - justamente o conflito deflagrado para terminar com todas as hostilidades.



Fonte:
http://veja.abril.com.br/161298/p_086.html

Mais:
http://veja.abril.com.br/historia/primeira-grande-guerra-mundial