domingo, 16 de março de 2014

A maldição dos Átridas

Trechos do posfácio de O Livro Negro Do Comunismo (1997), de Stéphane Courtois.


Paradoxalmente, foi exatamente no momento em que a reforma parecia poder impor-se à violência, ao obscurantismo e ao arcaísmo que a guerra veio mudar tudo e que, no dia 1º de agosto de 1914, a mais intensa violência de massas irrompeu bruscamente na cena europeia.

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Martin Malia escreveu: "O que o Orestes de Ésquilo demonstra é que o crime engendra o crime, a violência a violência, até que o primeiro crime da corrente, o pecado original da humanidade, seja expiado pela acumulação do sofrimento. De igual modo, o sangue vertido em agosto de 1914 é uma espécie de maldição dos Átridas na casa Europa, que engendrou essa concatenação de violências internacionais e sociais que dominaram todo um século: a violência e as matanças dessa Primeira Guerra Mundial foram desproporcionadas relativamente aos ganhos que qualquer das partes poderia esperar. Foi a guerra que gerou a Revolução Russa e a tomada do poder pelos bolcheviques." Essa análise não teria sido desmentida por Lenin, que, desde 1914, apelava à transformação da "guerra imperialista em guerra civil", e profetizava que da guerra capitalista sairia a revolução socialista.

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Essa violência intensa, contínua ao longo de quatro anos, sob a forma de uma matança ininterrupta e sem saída, levou à morte de 8,5 milhões de combatentes. Correspondia a um novo tipo de guerra, definida pelo general alemão Ludendorff como uma "guerra total", implicando a morte tanto de militares como de civis. E, no entanto, essa violência, que atingiu um nível jamais visto na história mundial
*, foi limitada por todo um conjunto de leis e costumes internacionais.

[* http://en.wikipedia.org/wiki/Taiping_Rebellion]

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Entretanto, a prática de hecatombes cotidianas, muitas vezes em condições horríveis - os gases, os homens enterrados vivos pela explosão das granadas, as longas agonias entre as linhas -, pesou consideravelmente nas consciências, enfraqueceu as resistências psicológicas dos homens em face da morte - a sua e a dos outros. Desenvolveu-se uma certa insensibilização, até mesmo uma certa dessensibilização. Karl Kautsky, o principal dirigente e teórico do socialismo alemão, voltou ao assunto em 1920: "É à guerra que devemos atribuir a principal causa dessa transformação de tendências humanitárias numa tendência de brutalidade. [...] Durante quatro anos, a guerra mundial absorveu a quase-totalidade da população masculina saudável, as tendências brutais do militarismo atingiram o auge da insensibilidade e da bestialidade, e o próprio proletariado não conseguiu escapar à sua influência. Foi contaminado ao mais alto grau e saiu embrutecido sob todos os pontos de vista. Os que regressaram, habituados à guerra, estavam mais do que dispostos a defenderem, em tempo de paz, as suas reivindicações e os seus interesses, através de atos sangrentos e violências exercidas sobre os seus concidadãos. Esse fato forneceu à guerra civil um dos seus elementos."

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Nenhum dos chefes bolcheviques participou da guerra, quer por estarem no exílio - Lenin, Trotsky, Zinoviev -, quer por terem sido relegados para os confins da Sibéria - Stalin, Kamenev. Na sua maioria, eram homens de gabinete ou oradores de comício, sem experiência militar, nunca tinham participado de qualquer combate real, com mortos verdadeiros. Até a tomada do poder, as suas guerras tinham sido sobretudo verbais, ideológicas e políticas. Tinham uma visão abstrata da morte, do massacre, da catástrofe humana. Essa ignorância pessoal dos horrores da guerra jogou a favor da brutalidade. Os bolcheviques faziam uma análise de classe bastante teórica que ignorava a profunda dimensão nacional, senão mesmo nacionalista, do conflito. Responsabilizavam o capitalismo pela matança, justificando a priori a violência revolucionária: pondo termo ao reinado do capitalismo, a revolução acabava com os massacres, mesmo que isso significasse a destruição do "punhado" de capitalistas responsáveis. Macabra especulação, fundamentada na hipótese errônea de que se devia combater o mal com o mal. Durante os anos 20, um certo pacifismo, alimentado pela revolta contra a guerra, revelou-se muitas vezes como um vetor ativo de adesão ao comunismo.

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Como sublinhou François Furet em Le Passé d'une Illusion: "A guerra é feita por massas de civis arregimentados, que passam da autonomia do cidadão para uma obediência militar por um período de tempo cuja duração desconhecem e são mergulhados num inferno de fogo, onde se trata mais de 'aguentar' do que de calcular, de ousar ou de vencer. Nunca a servidão militar apareceu tão despida de adornos de nobreza como aos olhos desses milhões de homens transplantados, acabados de sair do mundo moral da cidadania. [...] A guerra é o estado político mais estranho ao cidadão. [...] O que a tornou necessária situa-se ao nível das paixões, sem relação com o dos interesses, que transige, e menos ainda com a razão, que reprova. [...] O exército em guerra constitui uma ordem social na qual o indivíduo deixa de existir e cuja própria inumanidade explica uma força de inércia quase impossível de quebrar." A guerra deu nova legitimidade à violência e ao desprezo pelo indivíduo, ao mesmo tempo que enfraqueceu uma cultura democrática ainda adolescente e revitalizava uma cultura de servidão.