quarta-feira, 31 de julho de 2013

Imagem e semelhança

No texto anterior, logo ali abaixo, mencionei o 1984 de Orwell e fiquei pensando, Quem aí leu Zamyatin? Quem aí ouviu falar de Zamyatin?

Conheci o escritor russo Yevgeny Zamyatin através do livro Os Eleitos, do jornalista americano Tom Wolfe. Depois de bastante procurar, consegui ler o principal romance do imaginativo eslavo, a ficção científica Nós (1924). Quando concluí a última página dessa claustrofóbica distopia, pude comprovar que era verdade o que comentavam por aí. É notória a influência sobre o best seller orwelliano. É evidente o caso de apropriação e reciclagem de situações. São gritantes as semelhanças entre as histórias. Observadores mais aguerridos chegam à acusação de plágio. Liberdade é escravidão, originalidade é cópia.

A imagem deste post é a capa de uma edição em inglês. Considerando o contexto, é uma das ilustrações mais criativas e geniais que já vi. A "despersonalização" das letras W e E, que se tornam praticamente indistinguíveis, perdendo sua individualidade e submetidas à fria coletividade dos bloquinhos empilhados.

Se for para resumir os conceitos por trás da obra, digo que se trata de uma crítica a pontos como a tentação do governismo totalitário, o abuso do racionalismo, a utopia do perfeccionismo intolerante, a face opressora do humanismo radical, o fetiche pelo jargão científico e pela mecanização, o remoto ideal platônico da expulsão dos poetas.

Chamou minha atenção o frequente uso de símiles, muitos deles baseados em assuntos da área de exatas. O autor era formado em Engenharia Naval e trabalhou vários anos nesse ramo. Alguns trechos:

"Logo me perguntei quase involuntariamente: 'Por que é belo tudo isto? Por que é bonita a dança?' A resposta foi: 'É um movimento regulado, não livre, porque seu sentido mais profundo é a submissão estética perfeita, a idealizada falta de liberdade.'"

"Pois os conceitos de liberdade e delito estão tão estreitamente vinculados como... digamos, por exemplo, como o movimento de um avião com sua velocidade: se a velocidade de um avião é zero, então este não se move; o que é absolutamente certo. Se a liberdade do homem é zero, então ele não comete delitos."

"Todo poeta autêntico é um Cristóvão Colombo. A América existia já há muitos séculos antes que Colombo a descobrisse. Do mesmo modo a tabela pitagórica existia já em potencial muitos séculos antes que R-13 nascesse, mas somente ele foi capaz de achar, na selva virgem das cifras, um novo Eldorado."

"Naquela época, o mar batia fortemente contra a costa e milhões de newtons, adormecidos na energia de suas ondas, eram úteis somente para despertar os cálidos sentimentos dos apaixonados. Nós, ao contrário daquele sussurro de sentimentalismo, soubemos tirar proveito, obtendo das ondas uma energia elétrica enorme. Soubemos domar esta fera selvagem e arfante, convertendo-a em um animal doméstico."

"Chego a uma conclusão estranha. A toda equação, a cada figura geométrica, corresponde uma linha curva ou um corpo. Para as fórmulas irracionais, a raiz quadrada de -1, não conhecemos um corpo proporcional, já que não podemos vê-lo. Mas o terrível é que estes corpos invisíveis existem ou hão de existir, pois na matemática muitas vezes introduzem-se sombras estranhas, fantasmagóricas e espinhosas, as raízes irracionais, como sombras projetadas sobre uma tela. Mas nem a matemática nem a morte equivocaram-se até agora."

"Não é estranho que os raios no ocaso tenham os mesmos ângulos que os do sol nascente e, ainda assim, ambos resultem absolutamente distintos entre si? A luz crepuscular é totalmente tranquila, quase um pouco amarga; mas a luz da manhã é prenhe de frescor e de melodias."

"Consentir ao 'eu' qualquer direito frente ao Estado Único seria o mesmo que manter o critério de que um grama pode equivaler a uma tonelada. Daí chego à seguinte conclusão: a tonelada tem direitos, o grama tem deveres. E o único caminho natural do nada à magnitude é: esquecer que é apenas um grama e sentir-se como uma milionésima parte da tonelada."

"Pois a morte é a dissolução total do 'eu' no cosmos. Daí deduzo: se o amor é designado com a letra L e a morte com a letra T, então L = f(T), o que significa que o amor é uma função da morte."

"O Protetor, que tantas vezes demonstrou sua infalibilidade e sabedoria, voltou a ser eleito pela quadragésima oitava vez. Alguns inimigos da felicidade trataram de alterar a cerimônia. Por sua conduta hostil ao Estado, perderam o direito de ser pedras estruturais dos fundamentos, ontem reafirmados, do Estado Único. Seria descabido atribuir alguma mínima importância aos votos discordantes. Seria igualmente ingênuo acreditar que uma tosse na sala de concertos pudesse fazer parte de uma sinfonia heroica."

domingo, 30 de junho de 2013

Tubarão na linha

A mais recente embrulhada do governo do preto queniano Hussein Obama: o projeto PRISM. Quem deu o furo foi o jornal liberaroide britânico The Guardian.

Tudo começou com a revelação - através do vazamento de documentação secreta - de que a empresa de telecomunicações Verizon repassava para a NSA (National Security Agency) e o FBI (Federal Bureau of Investigation) informações referentes a ligações telefônicas de milhões de clientes. Autoridades responderam que a vigilância tem seu foco apenas nos números de cada aparelho e na duração das chamadas, não no conteúdo das conversas. Sei.

E aí descobriram que prestadores de serviços de tecnologia/internet também estavam na jogada. Microsoft, Yahoo!, Google, Facebook, Paltalk, AOL, Skype, YouTube, Apple. E Dropbox na mira. De acordo com o combinado, agentes da inteligência americana poderiam acessar e-mails, áudios, vídeos, fotos e arquivos transferidos dos usuários. Apareceram notas oficiais dessas companhias sobre o assunto e, para variar, aconteceu como naquela frase da abertura do Arquivo X, só que mudando o sujeito: "Corporações negam ter conhecimento."

Infelizmente, ponto para a equipe dos paranoicos e conspiracionistas.

Mr. Obozo, 44º chefão da Casa Branca, saiu-se com esta: "We have to make choices as a society. It's important to recognize that you can't have 100% security and also then have 100% privacy and zero inconvenience." Até que faz sentido. Mas seria uma boa hora para pensar nos limites dessa política e recordar o célebre dito atribuído a Benjamin Franklin, o vovô da pipa: "Those who sacrifice liberty for security deserve neither."

Houve um senador democrata de uma sinceridade cavalar: "Everyone should just calm down... this isn't anything that is brand new." Desde a época do desastrado George W. Bush que a terra das estrelas & listras vem sendo submetida a controversos procedimentos de monitoração, reações provocadas pelos ataques de 11 de setembro de 2001. Tais medidas tiveram que passar por votação no Congresso e foram postas em prática após aprovação da maioria dos parlamentares. Defensores creditam a essa espionagem sistemática a façanha de ter desmantelado em 2009 os planos de um atentado a bomba ao metrô de Nova York.

Simpatizo com vários momentos da história dos EUA. Mas esse novo escândalo de abuso de confiança remete-nos a episódios tão feios e vexaminosos quanto a crise de Watergate e o programa MK Ultra.

Registrou-se um disparo nas vendas do popular romance 1984, de George Orwell. É uma ficção científica distópica famosa por criações sinistramente plausíveis como o onisciente déspota Big Brother e o invasivo equipamento teletela. O enredo mostra os perigos de um aparato de olhos e ouvidos do rei que se volta contra as pessoas que ele em tese deveria proteger.

* * *

Com essa polêmica toda, lembrei o tempo em que eu cursava a disciplina de Redes na faculdade (4º semestre). Em certa aula no laboratório de informática, fomos apresentados ao interessante programinha Wireshark, o qual rapidamente apelidamos de "o barbatana". Colocamos a mão na massa e aplicamos conceitos do modelo OSI de camadas hierárquicas. Na ocasião, utilizamos o software para observar as mensagens de protocolos que são trocadas durante uma comunicação cliente-servidor. Ali vimos como era assustadoramente fácil hackear dados e bisbilhotar máquinas conectadas entre si. Porque malandragem as técnicas do inimigo a gente aprende na escola. O texto relacionado a uma das séries de exercícios dizia:

Vamos tentar visitar um local na web que é protegido por senha e examinar a seqüência de mensagens HTTP trocadas com este local. O URL http://gaia.cs.umass.edu/ethereal-labs/protected_pages/HTTP-ethereal-file5.html é protegido por senha. O usuário é "eth-students" (sem as aspas), e a senha é "network" (novamente, sem as aspas). Então vamos acessar o local protegido por senha. Faça o seguinte:

- inicie o navegador web, certifique-se de que o cache seja apagado
- inicie o Wireshark
- inicie a captura de pacotes (Ctrl+I, depois clique no botão Start)
- copie e cole o URL no navegador: http://gaia.cs.umass.edu/ethereal-labs/protected_pages/HTTP-ethereal-file5.html
- pare a captura de pacotes (Ctrl+E), e digite "http" na caixa de texto de especificação de filtro, para que apenas as mensagens HTTP seja exibidas


Vinham umas questões a respeito da experiência. E a seguir:

O nome de usuário (eth-students) e a senha (network) que você digitou foram codificados na cadeia de caracteres (ZXRoLXN0dWRlbnRzOm5ldHdvcms=) após o cabeçalho "Authorization: Basic" na mensagem HTTP GET. Parece que o nome e senha estão criptografados, mas na verdade estão simplesmente codificados em um formato denominado Base64. O nome do usuário e a senha não estão criptografados. Para ver isso, vá para http://www.hcidata.info/base64.htm, copie e cole o texto ZXRoLXN0dWRlbnRzOm5ldHdvcms= e pressione Convert to ASCII. Você traduziu de Base64 para ASCII, e desta forma consegue ver o nome de usuário e a senha. Sabendo que alguém pode baixar o Wireshark e capturar pacotes (não somente os próprios), e alguém pode traduzir de Base64 para ASCII, deve estar claro para você que o uso de senhas apenas em locais na web não garantem segurança, a não ser que medidas adicionais sejam tomadas.

Não tema! Como veremos no capítulo 7, há meios de fazer o acesso WWW ser mais seguro. Contudo, nós claramente precisamos de algo que vá além do framework básico de autenticação HTTP.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

AS/400

"Ambos [jogador e salteador], pois, como de bom grado auferem ganhos de fontes indébitas, são sórdidos amantes do ganho." (Aristóteles, Ética A Nicômaco, Livro IV - Parte 1)

Se o lance do roubino, epa, rabino Henry Sobel era afanar gravatas em elegantes lojas de Palm Beach, o larápio semita Bernard Lawrence Madoff preferiu voos bem mais ambiciosos. Ele foi o cérebro por trás daquilo que muitos tacham de "a fraude do século" e "maior trapaça de todos os tempos". Os seguintes trechos são daqui.

* * *

A estratégia de investimentos de Madoff era sigilosa, vendida como "complicada demais para ser compreendida por pessoas de fora". Os únicos detalhes que ele fornecia era que ele utilizava operações com opções, mas pelos poucos detalhes que eram fornecidos não poderiam gerar uma estratégia de investimentos tão lucrativa. E todos os que questionavam Madoff de suas estratégias eram respondidos de maneira bastante seca. O que se descobriu posteriormente era que a fraude era completa, que o fundo de Madoff não tinha realizado operações por diversos anos. O dinheiro recebido dos clientes simplesmente ia para as contas pessoais de Madoff.

Ao contrário de outros casos de fraudes, a marca de Madoff era a discrição e até certa modéstia, apesar do gigantismo do esquema. Apesar de precisar de novos recursos para pagar as solicitações de resgate, Madoff não se mostrava ansioso por receber novos cotistas, chegando a recusar alguns investidores, e mantinha uma aura de sigilo e de exclusividade. Mesmo no mundo dos investidores ricos, não era qualquer um que podia investir no fundo de Madoff, mas muitos desejavam pelo excelente retrospecto do fundo. Havia ainda uma cláusula de confidencialidade impedindo que os investidores contassem que aplicaram seu dinheiro no fundo de Madoff. O padrão de rentabilidade era outro diferencial em relação a outros esquemas, não sendo muito espetacular, mas gerando retornos entre 10% e 15% ao ano de maneira bastante regular, sem muito risco, ao contrário de outros hedge funds, e sem retrospecto de um ano negativo. Madoff sequer cobrava elevadas taxas de administração ou de performance, apenas comissões de vendas. Melhor ainda, a liquidez do fundo era imediata, não sendo exigida a carência comum nos fundos de hedge.

A fraude pôde continuar por diversos anos porque Madoff conseguiu se manter um pouco fora do radar e também por ingenuidade dos investidores e leniência e incompetência de quem deveria pegá-lo. Como ocorreu com outras fraudes, alertas foram emitidos antes do golpe ser finalmente revelado. Um foi a reportagem da revista Barron's "Don't ask, don't tell". Embora não declare que Madoff seja uma fraude, planta diversas interrogações que deixariam um investidor mais cético receoso de investir com Madoff. Mas a maior "bandeira vermelha" foi o documento "The World's Largest Hedge Fund's a Fraud", entregue à SEC [Securities and Exchange Commission] e que denunciava o fundo de Madoff sob duas hipóteses: ou se tratava de um esquema de front running, onde Madoff lucraria com o acesso privilegiado às ordens dos clientes da área de corretagem, o que constitui insider trading, ou seria um esquema Ponzi, hipótese mais provável segundo Harry Markopolos, o autor anônimo do documento. No documento, Markopolos levantou vinte e cinco evidências de que as operações do fundo eram fraudulentas. A SEC investigou Madoff diversas vezes, sem ter encontrado nada de irregular. Segundo Madoff, ele poderia ter sido pego, mas apenas se os investigadores tivessem feito as perguntas certas. Na verdade, poucos dentro ou fora da SEC imaginavam que Madoff poderia ser um fraudador.

Além desses alertas, outros fatores poderiam e deveriam ter sido checados pelos investidores para levantar dúvidas sobre a idoneidade de Madoff. A auditoria independente era realizada por uma firma insignificante, com apenas um auditor que sequer tinha permissão para realizar auditorias públicas e cujo único sócio vivia nas Bermudas. Também não havia um depositário independente, como um banco. Os distribuidores das cotas, cegados pelas altas comissões, não questionavam as práticas de Madoff, assim como os investidores deslumbrados.

Diferente de outros esquemas, o alvo preferencial de Madoff eram investidores ricos, o tíquete mínimo sendo de US$ 5 milhões. E dentro dessa categoria, valia tudo: empresários, celebridades, amigos, sócios do clube de golfe, instituições beneficentes, dentre outros. Note-se que não se tratava de investidores pouco educados ou que não sabiam ganhar dinheiro ou dele cuidar. Madoff só não aceitava dinheiro de gestores profissionais, que poderiam facilmente detectar a fraude se tivessem conhecimento de seu fundo. Até instituições financeiras se envolveram no golpe e foram desfalcadas, perdendo ainda mais com processos de seus clientes, que entenderam ter havido negligência por parte dos bancos.

A crise financeira [de 2008] arruinou o esquema de Madoff, ao gerar um volume imenso de solicitações de resgate que o golpista simplesmente não conseguia atender. Quem estava dentro queria sair e quem estava na fila já não queria mais entrar. Com isso, Madoff acabou sendo desmascarado pela crise (nada melhor para revelar fraudes do que as crises). Não se sabe e talvez nunca se saberá o tamanho do esquema, já que as operações não eram devidamente registradas. Estima-se em algo entre 12 e 36 bilhões de dólares contando apenas o principal, e US$ 65 bilhões considerando os rendimentos imaginariamente auferidos.

Madoff foi pego, julgado e condenado a 150 anos de prisão.

* * *

Alguém desprevenido talvez imagine que foi preciso um mirabolante suporte tecnológico para coordenar e ocultar um crime de semelhante magnitude durante tanto tempo. Os fatos vão na contramão dessa teoria. No antes misterioso e hoje ambiguamente famoso 17º andar do Lipstick Building, todas as operações ilícitas do Bernie Menorá tinham como base um arcaico IBM Application System/400, o AS/400. Uma dessas peças de museu que em 2008 costumávamos associar a geeks saudosistas, não a estelionatários de Wall Street.

A linha AS/400 (depois eServer iSeries (depois System i)) de computadores de médio porte foi lançada em 1988. Era uma verdadeira família de mamutes do Pleistoceno, grandes caixas futuristas com uma aparência de frigobar. Originalmente, funcionavam com um processador CISC e rodavam um sistema operacional chamado OS/400.

O servidor utilizado na falcatrua épica - apelidado de "House 5" - não trabalhava em rede, era totalmente inacessível a outras máquinas. A quadrilha era composta por pouco mais de 20 pessoas. O truque consistia em forjar e imprimir relatórios, planilhas, extratos e declarações de supostos clientes que garantiam estar tudo correto com as finanças.

O aspecto humano dessa história também é interessante. Algumas das vítimas ludibriadas eram ricaços em busca do tal diferencial. Poderia ser balonismo, hipismo, falcoaria, numismática. Terminaram caindo que nem patinhos na lábia do judeu. Quack.

Desses golpes de esquema de pirâmide, aqui no Brasil houve os casos de, hã, empreendimentos como o Avestruz Master e as fazendas Boi Gordo.

Mark Madoff, um dos filhos de Bernie Vigarista, cometeu suicídio dois anos após a prisão do pai. Enforcou-se. Karma's a bitch.

Curioso comercial japonês do AS/400 aqui.

terça-feira, 30 de abril de 2013

O homem desesperado que era quinta-feira

O rosto do Caio me lembrava do quadro O Homem Desesperado, do pintor francês Gustave Courbet. A barbicha de cabrito albanês, as feições gaulesas, os olhos castanhos e assustados que transmitiam tensão como uma antena transmite ondas em hertz, o cabelo em desalinho que o deixava parecido com o humorista Adamastor Pitaco. Conheci-o nas cervejadas da faculdade, ele era aluno da Geografia. Repleto de furores anarquistas, ele possuía o dom e a arte de estragar qualquer roda de conversa ao trazer à tona a luta dos índios Parakanan, a importância dos gasodutos, o drama do polígono das secas, o perigo dos rios assoreados e o potencial das jazidas de manganês. Tocava baixo num trio de punk rock, Os Bolsonaros. Ao saber que eu estudava Computação, pediu que eu produzisse um vírus para infectar o site do governo estadual.

Certa vez ele requisitou meus serviços e fui à casa dele fazer manutenção num defeituoso PC Duron. Mal entrei e enroscou-se em minhas canelas um gatinho mestiço que ele recolhera da sarjeta e que se chamava Hassan Mimi (Hassan em alusão ao fundador da Irmandade Muçulmana). Ou seja, o surrado e patético perfil do revolucionário misantropo que busca refúgio no convívio dos quadrúpedes pulguentos. Enquanto labutei com a chave de fenda na carcaça da máquina esse falastrão não me deu sossego. Atulhou-me de recomendações bibliográficas, Diógenes de Sínope, Max Stirner, Bakunin, Kropotkin, Malatesta. Cultivava até um panteão particular de ídolos, uma extensa e cansativa galeria de depravados idealistas, de degenerados por uma causa, os antípodas da minha classe, a dos conformados e confortáveis. Indivíduos que provocaram um barulho dos diabos e magnetizaram milhares de opiniões, a favor ou contra, em suas respectivas épocas. E agora evanescentes na quilometragem do tempo, na poeira do esquecimento. Max Hödel, Nikolai Rysakov, Roderick Maclean, Ravachol, Santiago Salvador Franch, Leon Czolgosz, Gaetano Bresci, Gennaro Rubino, Manuel Buíça, Alexandros Schinas, Fanni Kaplan, Mario Buda, Bhagat Singh. Ele era autor de um blog, o Granada Verbal, e postava sob o pseudônimo de Princip. Obviamente, nada relacionado a essa instituição decadente e cheia de sífilis que é a monarquia. Mas sim uma referência ao sujeito que ele considerava o maior arquiteto de destruição e projetor de ruínas de toda a História, aquele cujo nome pode ser tortuosamente associado a eventos tão díspares quanto a Batalha de Verdun e a Ofensiva do Tet, o assassinato do veadão nazista Ernst Röhm e a crise dos mísseis em Cuba: Gavrilo Princip. Caio era ainda um garotinho quando assimilou o radicalismo, espécie de catapora ideológica. Apedrejava vitrines de delicatessen e fugia gritando "e as criancinhas carentes morrendo de fome!".

Arrisquei uma sincera questão:

- Por que tu não arruma uma namorada?

- Tive uma. Ela era do PETA, manja? Um dia rolou um desentendimento brabo, rompemos e ela me trocou por um corgi. Cachorro de elite! Que sacanagem.

- Rapaz, essas teorias de atentado são boas no papel. (mentira; na ocasião eu já suspeitava; e hoje percebo que era um papo tão convincente quanto uma peruca de Donald Trump, tão confiável quanto um foguete da Coreia do Norte, tão sensato quanto um texto de Eliane Brum, tão agradável quanto um exame proctológico) Mas na prática quase sempre terminam prejudicando gente inocente.

Ele respondeu, incisivo e na lata, ecoando as palavras do implacável Émile Henry:

- Não existem inocentes na burguesia.

Era um ateu assumindo prerrogativas do deus Enlil dos sumérios, tomando decisões de vida e de morte, arrependido da criação e invocando o dilúvio purificador.

Horas depois de concluído esse trabalho, eu estava de bobeira deitado no meu quarto, mirando a brancura do teto. Tentava recordar onde eu vira um aparte para o monte de bosta perniciosa que escutei naquela tarde. Levantei-me, encarei a estante e puxei um volume. O Homem Que Era Quinta-Feira, G.K. Chesterton, 1908. Procurei trechos marcados. Era isto:

"O punhal era simplesmente a expressão da velha pendência pessoal com um tirano pessoal. A dinamite não é apenas nosso melhor instrumento; é o nosso melhor símbolo. Para nós é um símbolo tão perfeito como o incenso para as orações dos cristãos. Expande-se; só destrói porque se expande. Assim também é o pensamento: só destrói porque se expande. O cérebro do homem é uma bomba, bradou abandonando-se subitamente à sua estranha paixão e golpeando o crânio com violência. Meu cérebro sente-se como uma bomba, noite e dia. Precisa explodir! Precisa explodir! O cérebro do homem deve explodir, ainda que arrebente todo o universo."

E isto:

"É natural, portanto, que estas pessoas falem no advento de uma era de felicidade, no paraíso do futuro, numa humanidade liberta da servidão do vício e da servidão da virtude, e de coisas semelhantes. Assim também falam os do círculo interno, os do sacerdócio sagrado. Também falam para as multidões aclamadoras da felicidade futura e da humanidade que um dia será livre. Mas em suas bocas (e aqui o guarda baixou a voz), em suas bocas essas frases ditosas têm uma significação aterradora. Eles não têm ilusões; são demasiadamente intelectuais para crer que neste mundo o homem possa libertar-se uma vez sequer do pecado original e do combate. Suas palavras querem dizer morte. Quando asseveram que a humanidade há de ser livre algum dia, têm em mente que a humanidade há de suicidar-se. Quando falam de um paraíso fora do bem e do mal, têm em mente o túmulo. Visam apenas dois objetivos: destruir primeiro a humanidade e depois destruírem-se a si mesmos. É este o motivo por que lançam bombas em vez de disparar pistolas. A tropa dos inocentes fica desapontada ao ver que a bomba não matou o rei, mas o alto sacerdócio regozija-se por saber que matou alguém."

Perdi contato com a excêntrica figura em 2005. Aconteceu um confuso protesto de metalúrgicos na Avenida da Universidade, perto do prédio da reitoria, e o Caio lançou um Molotov num policial militar. No tumulto consequente, o vândalo conseguiu livrar a cara misturando-se à multidão enlouquecida. Segundo comparsas, ele juntou umas economias e despachou-se imediatamente, de carona em um navio cargueiro que rumava para a Espanha. O guarda escapou vivo, ao custo de 20% do corpo queimado. A velha e macabra receita dos ovos quebrados para a omelete. Iguaria que, apesar das medidas extremas para seu preparo, nunca chega a nossas mãos, como no mito de Tântalo.

E aí que semana passada eu observava umas manchetes no portal Terra e cliquei na notícia de uma manifestação de rua em Madri. Fulanos na Plaza de Cibeles bradavam slogans sobre o nudismo cicloativista, os drones no Paquistão e o desemprego que assola o continente do welfare state. O negócio desandou em pancadaria e um baderneiro com máscara de Guy Fawkes tombou morto com um tiro no peito disparado pela tropa de choque. Sem documentos, a vítima circulou na imprensa identificada apenas por um vago apelido de guerra, Caballero Princip. Será?, especulei. Se for, topou com o destino que as mentes intempestivas e atormentadas fatalmente encontram: o estouro. Blow out.

domingo, 31 de março de 2013

De repente 30

De repente 30 1983: O fenômeno meteorológico El Niño causa danos em várias partes do planeta.

1984: Publicado Neuromancer, de William Gibson. Possui uma das frases introdutórias mais inspiradas que conheço: "The sky above the port was the color of television, tuned to a dead channel." ["O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar."]

1985: Nasce o último dos 54 filhos do Imperador Bokassa.

1986: Estação espacial Mir inicia suas atividades.

1987: Três Solteirões E Um Bebê é a maior bilheteria do ano. Tem a famosa cena do menino "fantasma" na janela.

1988: Morris worm alastra-se pela internet.

1989: Vazamento no petroleiro Exxon Valdez derrama cerca de 40 milhões de litros de óleo no mar.

1990: Tim Berners-Lee cria a World Wide Web.

1991: Lançado o game Desert Strike. Baseado em eventos da Guerra do Golfo, é um exemplo de bom uso de gráficos com perspectiva isométrica.

1992: Termina oficialmente no Brasil a reserva de mercado de informática.

1993: Desastre aéreo com a seleção zambiana de futebol. 30 mortos.

1994: Roberto Baggio vacila no pênalti decisivo da final da Copa.

1995: Lançado Forbidden, aquele que seria o último álbum de estúdio do Black Sabbath. A faixa 2 aqui.

1996: O campeão de xadrez Garry Kasparov enfrenta o supercomputador Deep Blue.

1997: Crise financeira dos tigres asiáticos.

1998: Concluída em Kuala Kumpur (Malásia) a construção das Torres Petronas, consideradas à época as mais altas do mundo.

1999: Decretada a falência da rede de lojas Mesbla.

2000: A banda Metallica move processo contra o Napster.

2001: O autor Edwin Black publica o livro IBM E O Holocausto.

2002: Um momento de celebração entre os aficionados por palíndromos foi às 20:02 do dia 20/02/2002, ou 2002 2002 2002.

2003: Morre a ovelha Dolly, popstar da clonagem. Seu nome era uma alusão à fartura mamária da cantora Dolly Parton.

2004: Termina o seriado Friends. Conquista o 4º lugar de último episódio mais assistido na história da TV.

2005: É realizado o upload do primeiro vídeo do YouTube, 'Me at the zoo'.

2006: Mark Foley, senador republicano e pederasta, é pego enviando para rapazes (alguns menores de idade) e-mails de conteúdo sexual.

2007: Ig Nobel de Medicina vai para uma dupla de doutores que investigava os efeitos colaterais de engolir espadas.

2008: Após uma longa espera, sai Chrono Trigger para Nintendo DS.

2009: Kim Dotcom, o Falstaff da pirataria virtual, gasta de uma só tacada 3,2 milhões de dólares na compra de 12 carros de luxo.

2010: Em um shopping de Katmandu, capital do Nepal, é inaugurada a primeira escada rolante do país.

2011: Marginais londrinos utilizam smartphones BlackBerry para combinar ataques.

2012: É aberto no Brasil um escritório do Baidu, a ferramenta de busca online mais popular da China.

2013: De repente 30.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Esse delirio que por ahi vae

Esse delirio que por ahi vae Foi de 2 x 1 o placar da vitória da Inglaterra sobre o Brasil no amistoso de 6 de fevereiro de 2013 no estádio de Wembley. Significou a quebra de um tabu de 23 anos de freguesia no histórico de partidas entre o chá das cinco e a feijoada. As páginas dos heraldos da Fleet Street e as câmeras da BBC mostraram torcedores britânicos que explodiam num desvario festivo que me pareceu apenas um tantinho menor que a furiosa reação dos mouros ao filmeco A Inocência Dos Muçulmanos. Vi essas cenas de comemoração e me lembrei de uma crônica de Monteiro Lobato, o criativo autor monocelha e eugenista. O título do texto é O 22 Da "Marajó". Está na coletânea A Onda Verde (1921). Em português da época de Epitácio Pessoa.

* * *

Esse delirio que por ahi vae pelo futebol tem seus fundamentos na própria natureza humana. O espectáculo da lucta sempre foi o maior encanto do homem; e o prazer da victoria, pessoal ou do partido, foi, é e será a ambrósia dos deuses manipulada na terra. Admiramos hoje os grande philosophos gregos, Platão, Sócrates, Aristóteles; seus coevos, porém, admiravam muito mais aos athletas que venciam no estádio. Milon de Crotona, campeão na arte de torcer pescoços a touros, só para nós tem menos importância que seu mestre Pythagoras. Para os gregos, para a massa popular grega, seria inconcebível a idéa de que o philosopho pudesse um dia offuscar a gloria do luctador.

Em França, antes da surra homérica que lhe deu Dempsey, o homem verdadeiramente popular era George Carpentier, mestre em sôccos de primeira classe; e se dessem nas massas um balanço sincero, veriam que elle sobrepujava em prestigio aos próprios chefes supremos vencedores da guerra.

Nos Estados Unidos ha sempre um campeão de box tão entranhado na idolatria do povo que está em suas mãos subverter o regimen politico.

Entre nós ha o exemplo recente de Friedenreich, um pé de boa pontaria pelo qual milhares de creaturas, sobretudo creanças, são capazes de sacrificar a vida.

E os delirios collectivos provocados pelo embate de dois campeões em campo? Impossivel assistir-se a espectáculo mais revelador da alma humana do que o jogo de futebol em que disputam a primazia paulistanos e italianos, em S. Paulo.

Não é mais esporte, é guerra. Não se batem duas equipes, mas dois povos, duas nações, duas raças inimigas. Durante todo o tempo da lucta, de quarenta a cincoenta mil pessoas deliram, em transe, extacticas, na ponta dos pés, coração aos pulos e nervos tensos como cordas de viola. Conforme corre o jogo, ha pausas de silencio absoluto na multidão suspensa, ou deflagrações violentissimas de enthusiasmo que só a palavra delirio classifica. E gente pacifica, bondosa, incapaz de sentimentos exaltados, sae fora de si, torna-se capaz de commetter os mais horrorosos desatinos.

A lucta de vinte e duas feras no campo, transforma em feras os cincoenta mil espectadores, possibilizando um esfaqueamento mutuo, num conflicto horrendo, caso um incidente qualquer funda em corisco as electricidades psychicas accumuladas em cada individuo.

O jogo de futebol teve a honra de despertar o nosso povo do marasmo de nervos em que vivia. Antes d'elle, só nas classes medias a lucta politica tinha o prestigio necessário para uma exaltaçãozinha periódica.

E isso porque de todos os esportes tentados no Brasil só o futebol conseguiu acclimar-se, como o café. Hoje, alastrado de norte a sul, transformou-se quasi em praga, conseguindo, só elle, interessar vivamente, exaltadamente, delirantemente o nosso povo.

No Estado de S. Paulo não ha recanto, villoca, fazenda, bairro onde se não veja num chão plaino e batido os dois rectângulos oppostos, assignaladores d'um ground. Pelas regiões novas, de virgindade só agora atacada pelos invasores, é commum topar-se de súbito, em plena matta, uma clareira aberta e limpa onde, nas horas de folga, os derrubadores de páo vêm bater bola.

Já assistimos a um match em certa fazenda. Tudo muito bem arrumado; os players uniformizados, de meias grossas e botinas ferradas, tal qual nos clubs das cidades. E falando em corners, goals, hands, half-times, a inglezia inteira dos termos technicos.

Ao nosso lado o fazendeiro explicava:

- Aquelle goal-keeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no chão puxando lenha. O center-half é madeireiro; está-me lavrando umas perobas na roça velha. Os full-backs são tropeiros e os forwards, simples puxadores de enxada.

Era assombroso! Estávamos deante da maior revolução de costumes jamais operada em terras de Santa Cruz. E tudo por arte e obra de uma simples esphera de couro estufada de ar!...

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Matrimônio helvético

Eu conversara com a Silvia pela última vez no final de 2002, na partida dela para a Suíça. Emigrava para estudar Hotelaria numa faculdade de Basileia, capital do cantão de Basel-Stadt e berço do tenista Roger Federer. Lembro os momentos no aeroporto, a tia Ceiça efetuando um bombardeio de conselhos que iam desde agasalho a atenção na hora do troco. Pensei num filme de época, os personagens subindo a bordo do transatlântico S.S. Poseidon, de repente a atrocidade que era o rugido do apito, zarpar, os lenços em despedida, os chapéus safari ou cheesecutter acenando do deque, os vultos no cais retribuindo com tchauzinhos. Concluída a graduação, ela imergiu num voraz redemoinho de atividades e em 2012 retornou à terceiromundista, calorenta e nem por isso menos saudosa Fortaleza. E o recado que nos surpreendeu: estava noiva. E convencera seu futuro proprietário, suserano e mestre a oficializar a união no Brasil. Um matrimônio helvético nos trópicos. Dela que em breve assumiria a identidade de senhora Blickensderfer.

Peguei o Audi e guiei rumo à casa do tio Leo, no Itaperi, residência que se agitava numa animação quase elétrica, faíscas atravessando o ar. Tantas pessoas fascinadas observando a parente cosmopolita, articulada e que trazia mil notícias do país da neve eterna dos Alpes, da clássica Bond girl Ursula Andress e das barras de chocolate Nestlé. O quarto dela permanecera supersticiosamente intocado até pelo espanador, dir-se-ia que grãos de poeira suspenderam suas andanças, que o recinto desenvolvera uma instância cronológica particular. Arqueólogos interessados nos primórdios do século XXI talvez se mobilizassem para analisar a alcova. Com um interesse longe de ser científico é que a tia Ceiça às vezes entreabria a porta e dava uma mirada no lugar, tentando amenizar a saudade, que martelava em seu peito como o bleinblein de um sino de campanário; a filha agora batalhando numa terra distante e de costumes diferentes. No dia em que voltou, ela admirou-se da intrigante estagnação de seu antigo dormitório. As persianas cerradas, o armário de nogueira, o pufe acinzentado, o arsenal de maquiagem, o espelho circular, o mural cheio de fotos, os amontoados pares de sapatos, a cama com o colchão de movimentos submarinos, o relógio gato Felix cuja cauda era um pêndulo, o quadro com gravura art déco celebrando os roaring 20s, o troféu de um concurso de maquetes destacando-se em uma prateleira da estante, a caixinha de música com a bailarina num equilíbrio de flamingo, alguns CDs: Vanessa Carlton, Eros Ramazzotti, Enrique Iglesias, Sophie Ellis-Bextor, Kosheen, Lasgo; descansando na lisura de uma escrivaninha delgada, um livro: Jane Eyre, de Charlotte Brontë, um marcador entre as páginas 196 e 197, o seguinte trecho sublinhado a lápis:

"- Que história mais gosta de ouvir?
- Oh, não tenho muita escolha! Geralmente são sobre o mesmo tema... namoro; e prometem terminar na mesma catástrofe... casamento."


Encontrei-a cercada de inquisidores. Seu corpo magro de redondezas estratégicas, seus cabelos pretíssimos em cascata, sua pele bronze-de-quem-veleja, seu nariz de duquesa, seus intimidadores e dardejantes olhos verdes, sua voz de Rosamund Pike. Na dicção e nos gestos, indícios de uma complicada mistura de latitudes, as arcadas de um sisudo aqueduto europeu e os losangos de um festivo calçadão praiano.

- Primo Silvio, há quanto tempo!

- Prima Silvia, há quanto tempo!

Nada criativo, reconheço. Não é moleza ter que atualizar uma década de assuntos.

- E então, garoto, o que faz da vida?

- Uhm... Trabalho no ramo de computadores.

- Tipo aquele Steve Jobs?

- É por aí. Só que meus resultados são bem mais modestos. E possuo a vocação empreendedora de um texugo empalhado.

- Afff... Eu soube de umas fofocas. Imagino que esse será outro casamento em que as tias irão te incomodar com o papo de "Você é o próximo".

- Vão não. Pararam de me perturbar depois que passei a dizer o mesmo para elas nos funerais.

- (risos) Que horror.

- Espalharam inclusive que eu estava mais encalhado que a Playboy da Fernanda Young.

- Tu não presta. Que raios é essa Fernanda? Ah, esquece. Eu e o Chris estamos adorando esse clima de preparativos, você deveria experimentar.

- Prometo que inovarei. Pedirei a mão da moça via telefone. Numa ligação a cobrar.

- Ok, desisto. Sabe, quando eu era pequena a mãe ouvia direto o LP da trilha internacional de Mulheres De Areia, o do Marcos na capa. A faixa 5, Let It Be Me, tinha uns versos assim:

God bless the day I found you
I want to stay around you
And so I beg you
Let it be me


Foi o que respondi ao Chris logo após o "Sim" na noite em que ele me convidou para jantar no Fischerstube e me anunciou a proposta.

- Caprichou na declaração. Parece algo muito adequado de se falar ao homem que você escolheu para ser seu marido. Mas mudando radicalmente a pauta - ou não -, satisfaça minha curiosidade: e esse lance da cultura das armas, como é?

- Menino, a cada mês de julho acontece uma tal de Feira do Tiro na cidade onde eu moro. É uma farra. De todos os lados vêm rifles de assalto, espingardas Remington, carabinas, idosos com mosquetes e arcabuzes, submetralhadoras, adolescentes de bicicleta e com a bandoleira de fuzis automáticos a tiracolo, pistolas, morteiros, canhões, Gatlings, caixotes de munição. Eu sempre vou num estande em que a gente pode disparar uma Browning .50 instalada num tripé. Dizem que uma rajada certeira divide um ser humano ao meio. Grrr, que nojo.

- Saquei. Aposto que essa máquina é perfeita para derrubar minarete.

E chegou a manhã de domingo do casório. Christian, natural de Zurique, era pesadão feito um cachorro São Bernardo, pálido, loiro ferrugem, com olhos de um azul rio Reno e sotaque arrevesado em que não faltavam "os cearrensas", "t'rrânsito louca", ásperas chicotadas fonéticas de um descendente de Guilherme Tell. A cerimônia seguiu o protocolo, foi sóbria, organizada, bonita, comovente. O noivo plantado com cara de paisagem perto do altar e a ansiedade que o levava a endireitar de três em três minutos o jasmim na lapela, a Silvia atrasada e sob a grinalda, a daminha conduzindo as alianças. Tive que aturar a homilia do padre, esse catalisador de bocejos, essa solene matraca de chavões, esse dedicado funcionário de uma sucursal do Vaticano. Pulemos a igreja e saltemos para o buffet.

Ataquei sem piedade o bife ao molho com arroz à grega, nham nham. Fedelhos tramavam surrupiar os bonequinhos de marzipã do topo do bolo. Tendo enfrentado e vencido uma extensa sequência de cumprimentos, saudações, presentes, agradecimentos e poses para cliques de insaciáveis câmeras digitais, a noiva aproveitou uma rápida trégua e sentou-se em uma cadeira vizinha a mim. Eu aplicava uma dentada de predador num cupcake. Ela segurava sua quinta flute de champanhe e exclamou:

- Cortem-lhes as cabeças, ordena a Rainha de Copas.

Uma leve embriaguez monárquica. Comentei:

- Você está um pouco alta, rainha do copo.

- Q'isso, uns golinhos inocentes. Quem está para lá de Marrakesh é o tio Jango, perdeu a compostura e começou a narrar casos de adultério, o mal educado. Rapaz, se eu cair nessa situação de chifre, vou apelar para a técnica oriental Matsunaga. Apanho uma faca, decepo a ferramenta e o pacote de documentos do gringo infiel, jogo na privada e puxo a descarga, que é pr'ele aprender a não mexer com nordestina.

- É o que, diaba?

- Brincadeira, tolinho. Tu não vive contando esse tipo de comédia naquele teu blog entregue às baratas? Grrr, baratas, que nojo.

- Uma piada, claro. Eu estava bancando o desentendido. Acha que sou idiota ou o quê?

- Ou o qu «hick» Se tu publicar um texto sobre isso aqui juro por Deus que te mat «hick» Ai, soluço.

- Não se preocupe. Como diria o detetive Axel Foley: confie em mim.