terça-feira, 30 de abril de 2013

O homem desesperado que era quinta-feira

O rosto do Caio me lembrava do quadro O Homem Desesperado, do pintor francês Gustave Courbet. A barbicha de cabrito albanês, as feições gaulesas, os olhos castanhos e assustados que transmitiam tensão como uma antena transmite ondas em hertz, o cabelo em desalinho que o deixava parecido com o humorista Adamastor Pitaco. Conheci-o nas cervejadas da faculdade, ele era aluno da Geografia. Repleto de furores anarquistas, ele possuía o dom e a arte de estragar qualquer roda de conversa ao trazer à tona a luta dos índios Parakanan, a importância dos gasodutos, o drama do polígono das secas, o perigo dos rios assoreados e o potencial das jazidas de manganês. Tocava baixo num trio de punk rock, Os Bolsonaros. Ao saber que eu estudava Computação, pediu que eu produzisse um vírus para infectar o site do governo estadual.

Certa vez ele requisitou meus serviços e fui à casa dele fazer manutenção num defeituoso PC Duron. Mal entrei e enroscou-se em minhas canelas um gatinho mestiço que ele recolhera da sarjeta e que se chamava Hassan Mimi (Hassan em alusão ao fundador da Irmandade Muçulmana). Ou seja, o surrado e patético perfil do revolucionário misantropo que busca refúgio no convívio dos quadrúpedes pulguentos. Enquanto labutei com a chave de fenda na carcaça da máquina esse falastrão não me deu sossego. Atulhou-me de recomendações bibliográficas, Diógenes de Sínope, Max Stirner, Bakunin, Kropotkin, Malatesta. Cultivava até um panteão particular de ídolos, uma extensa e cansativa galeria de depravados idealistas, de degenerados por uma causa, os antípodas da minha classe, a dos conformados e confortáveis. Indivíduos que provocaram um barulho dos diabos e magnetizaram milhares de opiniões, a favor ou contra, em suas respectivas épocas. E agora evanescentes na quilometragem do tempo, na poeira do esquecimento. Max Hödel, Nikolai Rysakov, Roderick Maclean, Ravachol, Santiago Salvador Franch, Leon Czolgosz, Gaetano Bresci, Gennaro Rubino, Manuel Buíça, Alexandros Schinas, Fanni Kaplan, Mario Buda, Bhagat Singh. Ele era autor de um blog, o Granada Verbal, e postava sob o pseudônimo de Princip. Obviamente, nada relacionado a essa instituição decadente e cheia de sífilis que é a monarquia. Mas sim uma referência ao sujeito que ele considerava o maior arquiteto de destruição e projetor de ruínas de toda a História, aquele cujo nome pode ser tortuosamente associado a eventos tão díspares quanto a Batalha de Verdun e a Ofensiva do Tet, o assassinato do veadão nazista Ernst Röhm e a crise dos mísseis em Cuba: Gavrilo Princip. Caio era ainda um garotinho quando assimilou o radicalismo, espécie de catapora ideológica. Apedrejava vitrines de delicatessen e fugia gritando "e as criancinhas carentes morrendo de fome!".

Arrisquei uma sincera questão:

- Por que tu não arruma uma namorada?

- Tive uma. Ela era do PETA, manja? Um dia rolou um desentendimento brabo, rompemos e ela me trocou por um corgi. Cachorro de elite! Que sacanagem.

- Rapaz, essas teorias de atentado são boas no papel. (mentira; na ocasião eu já suspeitava; e hoje percebo que era um papo tão convincente quanto uma peruca de Donald Trump, tão confiável quanto um foguete da Coreia do Norte, tão sensato quanto um texto de Eliane Brum, tão agradável quanto um exame proctológico) Mas na prática quase sempre terminam prejudicando gente inocente.

Ele respondeu, incisivo e na lata, ecoando as palavras do implacável Émile Henry:

- Não existem inocentes na burguesia.

Era um ateu assumindo prerrogativas do deus Enlil dos sumérios, tomando decisões de vida e de morte, arrependido da criação e invocando o dilúvio purificador.

Horas depois de concluído esse trabalho, eu estava de bobeira deitado no meu quarto, mirando a brancura do teto. Tentava recordar onde eu vira um aparte para o monte de bosta perniciosa que escutei naquela tarde. Levantei-me, encarei a estante e puxei um volume. O Homem Que Era Quinta-Feira, G.K. Chesterton, 1908. Procurei trechos marcados. Era isto:

"O punhal era simplesmente a expressão da velha pendência pessoal com um tirano pessoal. A dinamite não é apenas nosso melhor instrumento; é o nosso melhor símbolo. Para nós é um símbolo tão perfeito como o incenso para as orações dos cristãos. Expande-se; só destrói porque se expande. Assim também é o pensamento: só destrói porque se expande. O cérebro do homem é uma bomba, bradou abandonando-se subitamente à sua estranha paixão e golpeando o crânio com violência. Meu cérebro sente-se como uma bomba, noite e dia. Precisa explodir! Precisa explodir! O cérebro do homem deve explodir, ainda que arrebente todo o universo."

E isto:

"É natural, portanto, que estas pessoas falem no advento de uma era de felicidade, no paraíso do futuro, numa humanidade liberta da servidão do vício e da servidão da virtude, e de coisas semelhantes. Assim também falam os do círculo interno, os do sacerdócio sagrado. Também falam para as multidões aclamadoras da felicidade futura e da humanidade que um dia será livre. Mas em suas bocas (e aqui o guarda baixou a voz), em suas bocas essas frases ditosas têm uma significação aterradora. Eles não têm ilusões; são demasiadamente intelectuais para crer que neste mundo o homem possa libertar-se uma vez sequer do pecado original e do combate. Suas palavras querem dizer morte. Quando asseveram que a humanidade há de ser livre algum dia, têm em mente que a humanidade há de suicidar-se. Quando falam de um paraíso fora do bem e do mal, têm em mente o túmulo. Visam apenas dois objetivos: destruir primeiro a humanidade e depois destruírem-se a si mesmos. É este o motivo por que lançam bombas em vez de disparar pistolas. A tropa dos inocentes fica desapontada ao ver que a bomba não matou o rei, mas o alto sacerdócio regozija-se por saber que matou alguém."

Perdi contato com a excêntrica figura em 2005. Aconteceu um confuso protesto de metalúrgicos na Avenida da Universidade, perto do prédio da reitoria, e o Caio lançou um Molotov num policial militar. No tumulto consequente, o vândalo conseguiu livrar a cara misturando-se à multidão enlouquecida. Segundo comparsas, ele juntou umas economias e despachou-se imediatamente, de carona em um navio cargueiro que rumava para a Espanha. O guarda escapou vivo, ao custo de 20% do corpo queimado. A velha e macabra receita dos ovos quebrados para a omelete. Iguaria que, apesar das medidas extremas para seu preparo, nunca chega a nossas mãos, como no mito de Tântalo.

E aí que semana passada eu observava umas manchetes no portal Terra e cliquei na notícia de uma manifestação de rua em Madri. Fulanos na Plaza de Cibeles bradavam slogans sobre o nudismo cicloativista, os drones no Paquistão e o desemprego que assola o continente do welfare state. O negócio desandou em pancadaria e um baderneiro com máscara de Guy Fawkes tombou morto com um tiro no peito disparado pela tropa de choque. Sem documentos, a vítima circulou na imprensa identificada apenas por um vago apelido de guerra, Caballero Princip. Será?, especulei. Se for, topou com o destino que as mentes intempestivas e atormentadas fatalmente encontram: o estouro. Blow out.

domingo, 31 de março de 2013

De repente 30

De repente 30 1983: O fenômeno meteorológico El Niño causa danos em várias partes do planeta.

1984: Publicado Neuromancer, de William Gibson. Possui uma das frases introdutórias mais inspiradas que conheço: "The sky above the port was the color of television, tuned to a dead channel." ["O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar."]

1985: Nasce o último dos 54 filhos do Imperador Bokassa.

1986: Estação espacial Mir inicia suas atividades.

1987: Três Solteirões E Um Bebê é a maior bilheteria do ano. Tem a famosa cena do menino "fantasma" na janela.

1988: Morris worm alastra-se pela internet.

1989: Vazamento no petroleiro Exxon Valdez derrama cerca de 40 milhões de litros de óleo no mar.

1990: Tim Berners-Lee cria a World Wide Web.

1991: Lançado o game Desert Strike. Baseado em eventos da Guerra do Golfo, é um exemplo de bom uso de gráficos com perspectiva isométrica.

1992: Termina oficialmente no Brasil a reserva de mercado de informática.

1993: Desastre aéreo com a seleção zambiana de futebol. 30 mortos.

1994: Roberto Baggio vacila no pênalti decisivo da final da Copa.

1995: Lançado Forbidden, aquele que seria o último álbum de estúdio do Black Sabbath. A faixa 2 aqui.

1996: O campeão de xadrez Garry Kasparov enfrenta o supercomputador Deep Blue.

1997: Crise financeira dos tigres asiáticos.

1998: Concluída em Kuala Kumpur (Malásia) a construção das Torres Petronas, consideradas à época as mais altas do mundo.

1999: Decretada a falência da rede de lojas Mesbla.

2000: A banda Metallica move processo contra o Napster.

2001: O autor Edwin Black publica o livro IBM E O Holocausto.

2002: Um momento de celebração entre os aficionados por palíndromos foi às 20:02 do dia 20/02/2002, ou 2002 2002 2002.

2003: Morre a ovelha Dolly, popstar da clonagem. Seu nome era uma alusão à fartura mamária da cantora Dolly Parton.

2004: Termina o seriado Friends. Conquista o 4º lugar de último episódio mais assistido na história da TV.

2005: É realizado o upload do primeiro vídeo do YouTube, 'Me at the zoo'.

2006: Mark Foley, senador republicano e pederasta, é pego enviando para rapazes (alguns menores de idade) e-mails de conteúdo sexual.

2007: Ig Nobel de Medicina vai para uma dupla de doutores que investigava os efeitos colaterais de engolir espadas.

2008: Após uma longa espera, sai Chrono Trigger para Nintendo DS.

2009: Kim Dotcom, o Falstaff da pirataria virtual, gasta de uma só tacada 3,2 milhões de dólares na compra de 12 carros de luxo.

2010: Em um shopping de Katmandu, capital do Nepal, é inaugurada a primeira escada rolante do país.

2011: Marginais londrinos utilizam smartphones BlackBerry para combinar ataques.

2012: É aberto no Brasil um escritório do Baidu, a ferramenta de busca online mais popular da China.

2013: De repente 30.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Esse delirio que por ahi vae

Esse delirio que por ahi vae Foi de 2 x 1 o placar da vitória da Inglaterra sobre o Brasil no amistoso de 6 de fevereiro de 2013 no estádio de Wembley. Significou a quebra de um tabu de 23 anos de freguesia no histórico de partidas entre o chá das cinco e a feijoada. As páginas dos heraldos da Fleet Street e as câmeras da BBC mostraram torcedores britânicos que explodiam num desvario festivo que me pareceu apenas um tantinho menor que a furiosa reação dos mouros ao filmeco A Inocência Dos Muçulmanos. Vi essas cenas de comemoração e me lembrei de uma crônica de Monteiro Lobato, o criativo autor monocelha e eugenista. O título do texto é O 22 Da "Marajó". Está na coletânea A Onda Verde (1921). Em português da época de Epitácio Pessoa.

* * *

Esse delirio que por ahi vae pelo futebol tem seus fundamentos na própria natureza humana. O espectáculo da lucta sempre foi o maior encanto do homem; e o prazer da victoria, pessoal ou do partido, foi, é e será a ambrósia dos deuses manipulada na terra. Admiramos hoje os grande philosophos gregos, Platão, Sócrates, Aristóteles; seus coevos, porém, admiravam muito mais aos athletas que venciam no estádio. Milon de Crotona, campeão na arte de torcer pescoços a touros, só para nós tem menos importância que seu mestre Pythagoras. Para os gregos, para a massa popular grega, seria inconcebível a idéa de que o philosopho pudesse um dia offuscar a gloria do luctador.

Em França, antes da surra homérica que lhe deu Dempsey, o homem verdadeiramente popular era George Carpentier, mestre em sôccos de primeira classe; e se dessem nas massas um balanço sincero, veriam que elle sobrepujava em prestigio aos próprios chefes supremos vencedores da guerra.

Nos Estados Unidos ha sempre um campeão de box tão entranhado na idolatria do povo que está em suas mãos subverter o regimen politico.

Entre nós ha o exemplo recente de Friedenreich, um pé de boa pontaria pelo qual milhares de creaturas, sobretudo creanças, são capazes de sacrificar a vida.

E os delirios collectivos provocados pelo embate de dois campeões em campo? Impossivel assistir-se a espectáculo mais revelador da alma humana do que o jogo de futebol em que disputam a primazia paulistanos e italianos, em S. Paulo.

Não é mais esporte, é guerra. Não se batem duas equipes, mas dois povos, duas nações, duas raças inimigas. Durante todo o tempo da lucta, de quarenta a cincoenta mil pessoas deliram, em transe, extacticas, na ponta dos pés, coração aos pulos e nervos tensos como cordas de viola. Conforme corre o jogo, ha pausas de silencio absoluto na multidão suspensa, ou deflagrações violentissimas de enthusiasmo que só a palavra delirio classifica. E gente pacifica, bondosa, incapaz de sentimentos exaltados, sae fora de si, torna-se capaz de commetter os mais horrorosos desatinos.

A lucta de vinte e duas feras no campo, transforma em feras os cincoenta mil espectadores, possibilizando um esfaqueamento mutuo, num conflicto horrendo, caso um incidente qualquer funda em corisco as electricidades psychicas accumuladas em cada individuo.

O jogo de futebol teve a honra de despertar o nosso povo do marasmo de nervos em que vivia. Antes d'elle, só nas classes medias a lucta politica tinha o prestigio necessário para uma exaltaçãozinha periódica.

E isso porque de todos os esportes tentados no Brasil só o futebol conseguiu acclimar-se, como o café. Hoje, alastrado de norte a sul, transformou-se quasi em praga, conseguindo, só elle, interessar vivamente, exaltadamente, delirantemente o nosso povo.

No Estado de S. Paulo não ha recanto, villoca, fazenda, bairro onde se não veja num chão plaino e batido os dois rectângulos oppostos, assignaladores d'um ground. Pelas regiões novas, de virgindade só agora atacada pelos invasores, é commum topar-se de súbito, em plena matta, uma clareira aberta e limpa onde, nas horas de folga, os derrubadores de páo vêm bater bola.

Já assistimos a um match em certa fazenda. Tudo muito bem arrumado; os players uniformizados, de meias grossas e botinas ferradas, tal qual nos clubs das cidades. E falando em corners, goals, hands, half-times, a inglezia inteira dos termos technicos.

Ao nosso lado o fazendeiro explicava:

- Aquelle goal-keeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no chão puxando lenha. O center-half é madeireiro; está-me lavrando umas perobas na roça velha. Os full-backs são tropeiros e os forwards, simples puxadores de enxada.

Era assombroso! Estávamos deante da maior revolução de costumes jamais operada em terras de Santa Cruz. E tudo por arte e obra de uma simples esphera de couro estufada de ar!...

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Matrimônio helvético

Eu conversara com a Silvia pela última vez no final de 2002, na partida dela para a Suíça. Emigrava para estudar Hotelaria numa faculdade de Basileia, capital do cantão de Basel-Stadt e berço do tenista Roger Federer. Lembro os momentos no aeroporto, a tia Ceiça efetuando um bombardeio de conselhos que iam desde agasalho a atenção na hora do troco. Pensei num filme de época, os personagens subindo a bordo do transatlântico S.S. Poseidon, de repente a atrocidade que era o rugido do apito, zarpar, os lenços em despedida, os chapéus safari ou cheesecutter acenando do deque, os vultos no cais retribuindo com tchauzinhos. Concluída a graduação, ela imergiu num voraz redemoinho de atividades e em 2012 retornou à terceiromundista, calorenta e nem por isso menos saudosa Fortaleza. E o recado que nos surpreendeu: estava noiva. E convencera seu futuro proprietário, suserano e mestre a oficializar a união no Brasil. Um matrimônio helvético nos trópicos. Dela que em breve assumiria a identidade de senhora Blickensderfer.

Peguei o Audi e guiei rumo à casa do tio Leo, no Itaperi, residência que se agitava numa animação quase elétrica, faíscas atravessando o ar. Tantas pessoas fascinadas observando a parente cosmopolita, articulada e que trazia mil notícias do país da neve eterna dos Alpes, da clássica Bond girl Ursula Andress e das barras de chocolate Nestlé. O quarto dela permanecera supersticiosamente intocado até pelo espanador, dir-se-ia que grãos de poeira suspenderam suas andanças, que o recinto desenvolvera uma instância cronológica particular. Arqueólogos interessados nos primórdios do século XXI talvez se mobilizassem para analisar a alcova. Com um interesse longe de ser científico é que a tia Ceiça às vezes entreabria a porta e dava uma mirada no lugar, tentando amenizar a saudade, que martelava em seu peito como o bleinblein de um sino de campanário; a filha agora batalhando numa terra distante e de costumes diferentes. No dia em que voltou, ela admirou-se da intrigante estagnação de seu antigo dormitório. As persianas cerradas, o armário de nogueira, o pufe acinzentado, o arsenal de maquiagem, o espelho circular, o mural cheio de fotos, os amontoados pares de sapatos, a cama com o colchão de movimentos submarinos, o relógio gato Felix cuja cauda era um pêndulo, o quadro com gravura art déco celebrando os roaring 20s, o troféu de um concurso de maquetes destacando-se em uma prateleira da estante, a caixinha de música com a bailarina num equilíbrio de flamingo, alguns CDs: Vanessa Carlton, Eros Ramazzotti, Enrique Iglesias, Sophie Ellis-Bextor, Kosheen, Lasgo; descansando na lisura de uma escrivaninha delgada, um livro: Jane Eyre, de Charlotte Brontë, um marcador entre as páginas 196 e 197, o seguinte trecho sublinhado a lápis:

"- Que história mais gosta de ouvir?
- Oh, não tenho muita escolha! Geralmente são sobre o mesmo tema... namoro; e prometem terminar na mesma catástrofe... casamento."


Encontrei-a cercada de inquisidores. Seu corpo magro de redondezas estratégicas, seus cabelos pretíssimos em cascata, sua pele bronze-de-quem-veleja, seu nariz de duquesa, seus intimidadores e dardejantes olhos verdes, sua voz de Rosamund Pike. Na dicção e nos gestos, indícios de uma complicada mistura de latitudes, as arcadas de um sisudo aqueduto europeu e os losangos de um festivo calçadão praiano.

- Primo Silvio, há quanto tempo!

- Prima Silvia, há quanto tempo!

Nada criativo, reconheço. Não é moleza ter que atualizar uma década de assuntos.

- E então, garoto, o que faz da vida?

- Uhm... Trabalho no ramo de computadores.

- Tipo aquele Steve Jobs?

- É por aí. Só que meus resultados são bem mais modestos. E possuo a vocação empreendedora de um texugo empalhado.

- Afff... Eu soube de umas fofocas. Imagino que esse será outro casamento em que as tias irão te incomodar com o papo de "Você é o próximo".

- Vão não. Pararam de me perturbar depois que passei a dizer o mesmo para elas nos funerais.

- (risos) Que horror.

- Espalharam inclusive que eu estava mais encalhado que a Playboy da Fernanda Young.

- Tu não presta. Que raios é essa Fernanda? Ah, esquece. Eu e o Chris estamos adorando esse clima de preparativos, você deveria experimentar.

- Prometo que inovarei. Pedirei a mão da moça via telefone. Numa ligação a cobrar.

- Ok, desisto. Sabe, quando eu era pequena a mãe ouvia direto o LP da trilha internacional de Mulheres De Areia, o do Marcos na capa. A faixa 5, Let It Be Me, tinha uns versos assim:

God bless the day I found you
I want to stay around you
And so I beg you
Let it be me


Foi o que respondi ao Chris logo após o "Sim" na noite em que ele me convidou para jantar no Fischerstube e me anunciou a proposta.

- Caprichou na declaração. Parece algo muito adequado de se falar ao homem que você escolheu para ser seu marido. Mas mudando radicalmente a pauta - ou não -, satisfaça minha curiosidade: e esse lance da cultura das armas, como é?

- Menino, a cada mês de julho acontece uma tal de Feira do Tiro na cidade onde eu moro. É uma farra. De todos os lados vêm rifles de assalto, espingardas Remington, carabinas, idosos com mosquetes e arcabuzes, submetralhadoras, adolescentes de bicicleta e com a bandoleira de fuzis automáticos a tiracolo, pistolas, morteiros, canhões, Gatlings, caixotes de munição. Eu sempre vou num estande em que a gente pode disparar uma Browning .50 instalada num tripé. Dizem que uma rajada certeira divide um ser humano ao meio. Grrr, que nojo.

- Saquei. Aposto que essa máquina é perfeita para derrubar minarete.

E chegou a manhã de domingo do casório. Christian, natural de Zurique, era pesadão feito um cachorro São Bernardo, pálido, loiro ferrugem, com olhos de um azul rio Reno e sotaque arrevesado em que não faltavam "os cearrensas", "t'rrânsito louca", ásperas chicotadas fonéticas de um descendente de Guilherme Tell. A cerimônia seguiu o protocolo, foi sóbria, organizada, bonita, comovente. O noivo plantado com cara de paisagem perto do altar e a ansiedade que o levava a endireitar de três em três minutos o jasmim na lapela, a Silvia atrasada e sob a grinalda, a daminha conduzindo as alianças. Tive que aturar a homilia do padre, esse catalisador de bocejos, essa solene matraca de chavões, esse dedicado funcionário de uma sucursal do Vaticano. Pulemos a igreja e saltemos para o buffet.

Ataquei sem piedade o bife ao molho com arroz à grega, nham nham. Fedelhos tramavam surrupiar os bonequinhos de marzipã do topo do bolo. Tendo enfrentado e vencido uma extensa sequência de cumprimentos, saudações, presentes, agradecimentos e poses para cliques de insaciáveis câmeras digitais, a noiva aproveitou uma rápida trégua e sentou-se em uma cadeira vizinha a mim. Eu aplicava uma dentada de predador num cupcake. Ela segurava sua quinta flute de champanhe e exclamou:

- Cortem-lhes as cabeças, ordena a Rainha de Copas.

Uma leve embriaguez monárquica. Comentei:

- Você está um pouco alta, rainha do copo.

- Q'isso, uns golinhos inocentes. Quem está para lá de Marrakesh é o tio Jango, perdeu a compostura e começou a narrar casos de adultério, o mal educado. Rapaz, se eu cair nessa situação de chifre, vou apelar para a técnica oriental Matsunaga. Apanho uma faca, decepo a ferramenta e o pacote de documentos do gringo infiel, jogo na privada e puxo a descarga, que é pr'ele aprender a não mexer com nordestina.

- É o que, diaba?

- Brincadeira, tolinho. Tu não vive contando esse tipo de comédia naquele teu blog entregue às baratas? Grrr, baratas, que nojo.

- Uma piada, claro. Eu estava bancando o desentendido. Acha que sou idiota ou o quê?

- Ou o qu «hick» Se tu publicar um texto sobre isso aqui juro por Deus que te mat «hick» Ai, soluço.

- Não se preocupe. Como diria o detetive Axel Foley: confie em mim.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Zuse e Natal

Zuse e Natal Em 18 de dezembro de 1995, ocupados que estávamos com a correria típica do período, poucos foram os que repararam na notícia do falecimento, aos 85 anos, de um senhor germânico de pesados óculos de grau chamado Konrad Zuse, um dos pioneiros da computação. Parece que um sério pecado dele foi ter sido financiado pela tirania nacional-socialista e participado de esforços de guerra do Eixo. Contratado por um instituto de pesquisas aerodinâmicas, ele construiu paquidérmicas engenhocas de calcular que foram usadas para, por exemplo, aperfeiçoar o alcance de bombas voadoras. Com tendência ao isolamento e ao alheamento político, ele teve que aturar casos de assédio ideológico, mas jamais se filiou ao Partido-Estado. Passando por dificuldades econômicas, ele se viu diante das opções: abandonar seus projetos ou ser patrocinado pelo 3º Reich. Muitos anos depois da queda do regime hitlerista, ele classificaria sua escolha de "meu pacto faustiano".

Os seguintes trechos em itálico são daqui.

"O engenheiro berlinense é tido como o criador do primeiro computador do mundo e também da primeira linguagem de programação baseada em algoritmos.

Entre as contribuições mais conhecidas de Konrad Zuse para o mundo da informática estão as máquinas Z1, Z3 e Z4, construídas respectivamente em 1938, 1941 e 1945. A primeira era uma calculadora com tecnologia mecânica que, segundo a Universidade Técnica (TU) de Berlim, pesava cerca de 500 quilos e era capaz de fazer operações aritméticas de adição, subtração, multiplicação e divisão, além de calcular raiz quadrada e converter decimais em binários e vice-versa."

"O desenvolvimento da máquina Z2 em 1939 possibilitou a Konrad Zuse acumular experiência para finalizar, dois anos mais tarde, a construção do Z3. Considerada a primeira calculadora completamente automática e programável em sistema binário do mundo, a invenção tinha todos os componentes encontrados em um computador moderno, exceto memória para armazenar dados ou um programa.

O Z3 foi concebido antes mesmo do computador britânico Colossus, projetado durante a Segunda Guerra Mundial por Alan Turing, e do estadunidense ENIAC, criado em 1946 por John Eckert e John Mauchly. No entanto, o pesquisador Friedrich Naumann lembra em seu livro Do ábaco à internet: a história da informática (tradução livre) que a invenção de Konrad Zuse não foi levada a sério nem pelo governo nem pela indústria alemães na época."


"Formado em 1935 em Engenharia Civil, depois de passar pelos cursos de Arquitetura e Engenharia Mecânica na TU Berlim, Zuse utilizou a sala da casa dos pais durante anos para conceber os primeiros computadores. O engenheiro também já havia se dedicado à pintura e não tinha conhecimentos específicos de eletricidade ou eletrônica. Isso explica por que, segundo Naumann, a máquina Z3 foi vista durante muito tempo como um brinquedo de Zuse. Segundo o autor, o trabalho do engenheiro era visto apenas como um 'hobby'.

No mesmo livro, Naumann relata que nem mesmo Andreas Grohmann, assistente de Zuse, tinha noção do significado de sua contribuição para a construção do Z1. Ele menciona que o assistente teria dito que trabalhava às cegas, 'sem saber ao certo como aquele monstro que ali estava deveria funcionar'. Entretanto, depois de pronta, a máquina 'trabalhava sem grandes problemas e dava soluções exatas para questões complicadas'."


"Em 1945, Konrad Zuse criou o Z4, uma máquina muito mais potente que as anteriores. Enquanto o Z3 e o Z1 levavam entre três e cinco segundos para realizar uma operação de multiplicação, o Z4 era capaz de fazer 11 multiplicações em apenas um segundo."

"Em 1945, Zuse deixou a capital alemã e organizou o transporte do Z4. O Z3 e todas as fotos dele haviam sido destruídos durante um bombardeio aéreo. Durante muitos meses, o Z4 ficou guardado em um galpão na cidade de Hinterstein, próxima à fronteira austríaca."

"A máquina despertou o interesse do matemático Eduard Stiefel. Em setembro de 1945, ele e Zuse assinaram um contrato, formalizando o empréstimo do Z4 ao Instituto de Matemática da Universidade Técnica de Zurique (ETH) por cinco anos.

De acordo com um relatório publicado por aquela universidade em 1981, os suíços pretendiam utilizar o equipamento não só para efetuar cálculos numéricos abrangentes, mas também para enriquecer suas pesquisas e produzir seus próprios computadores em um futuro próximo. Para eles, o empréstimo do Z4 por 30 mil francos suíços era visto como uma boa chance de não ficar de fora na primeira fase da informática.

Além dos Estados Unidos, outras potências vinham apresentando significativos avanços na área, como o Reino Unido e a França. Segundo Naumann, porém, o Z4 foi o único computador da Europa em condições perfeitas de funcionamento até 1951.

No livro Der Computer - Mein Lebenswerk ('O computador - a obra da minha vida'), o próprio Konrad Zuse lamenta a falta de reconhecimento da importância de seus primeiros computadores pela própria Alemanha. Para ele, a indústria eletrônica do país agiu com lentidão, ao contrário das indústrias dos EUA e da Suíça.

De acordo com o engenheiro, a produção de computadores na Alemanha se deu de forma tardia, acarretando consequências lamentáveis à economia, 'pois a indústria de informática é hoje uma das mais importantes do mundo - se não a mais importante delas'.

Depois do empréstimo do Z4 à ETH, o próprio Konrad chegou a produzir e comercializar computadores em uma empresa com sede em Bad Hersfeld, no estado de Hessen. Em meados da década de 1960, porém, a firma foi comprada pela Siemens."


Mais algumas palavras:

- Existe uma distribuição Linux (desenvolvida por uma companhia de Nuremberg) cujo nome é SuSE, acrônimo para "Software und System-Entwicklung". Dizem que é apenas coincidência.

- No dia em que completaria 100 anos, 22 de junho de 2010, o cientista foi homenageado no logotipo do Google.

- Seu grande hobby era a pintura. Sua residência era abarrotada de telas, cavaletes, pincéis, estojos, paletas, bisnagas de tinta, esboços impressionistas. Se um curioso for a Redmond, WA, dirigir-se à sede da Microsoft e entrar no escritório do chefão, encontrará em uma das paredes um retrato de William Henry Gates III com data de (19)95 e assinado por Zuse.

- Excerto de uma palestra do professor Z.

E já que falamos tanto de Alemanha: lembrando que estamos naquela época do ano, encerro com O Tannenbaum, composição de Ernst Anschütz comumente associada às celebrações de dezembro. Feliz Natal e próspera profecia maia.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Sobre a elipse

Sobre a elipse A elipse é um conjunto de pontos que, supondo-o fora da origem O (0, 0) do plano cartesiano, com os focos paralelos ao eixo das abscissas e de centro C (x0, y0), é definido pela equação:

(x - x0 + (y - y0 = 1

De um artigo da nossa volúvel Wikipédia:

"A elipse tem a propriedade de que a bissetriz do ângulo formado pelos dois focos e por um ponto qualquer da elipse (como vértice) é perpendicular à tangente à elipse nesse ponto.

Como consequência, qualquer raio luminoso ou onda sonora, que parta de um dos focos, será refletido pela elipse na direção do outro foco.

[...] No Capitólio dos Estados Unidos há uma sala elíptica onde a propriedade refletora teria sido usada pelo presidente John Quincy Adams para escutar conversas que decorriam do outro lado da sala."

Mas não é dessa elipse que quero falar, a da geometria. E sim da figura de estilo. O subentendido. A omissão trabalhada. A supressão criativa. A lacuna que instiga o espectador.

Topamos diariamente com criaturas e assuntos que nos incomodam por seu teor explícito, sua crueza, indiscrição e falta de modos. Discussões exaltadas sobre saneamento básico ou reforma tributária, os desocupados do Occupy e sua fúria sólida que se desmancha no ar, as gravatas de Silas Malafaia, o cabelo pedreiro hipster do Neymar, tráfego congestionado às 07:30 da manhã, documentários sobre a Libéria ou o massacre de Srebrenica, dialetos bárbaros como juridiquês e economês, socialite de nome Valdirene. E chega.

É em oposição a essa overdose de realidade que chamo atenção agora para: a insinuação, a sugestão, a indireta, a abordagem oblíqua, o vago, as entrelinhas, o ambíguo. A habilidade de dizer sem dizer. Foi pensando nisso que reuni aqui exemplos de uso dos vários tipos de discurso elíptico. Vamos a eles.

I) O dramaturgo grego Aristófanes (446-386) era o rei da sátira, o original troll. Debochava dos moralistas e dos libertinos, dos pacifistas e dos belicosos, dos críticos e da plateia. Há uma peça dele, A Assembleia Das Mulheres, que se destaca pelo visionário caráter distópico. Trata-se de uma história sobre as trapalhadas e os impasses advindos da tentativa de implantação de uma quimera igualitária, ideias de jerico que buscavam eliminar diversas formas de desigualdade. Alguns trechos:

"Não esqueçam nossa combinação: não devemos deixar os homens perceberem nada de feminino em nós, principalmente qualquer parte de nosso corpo! Estaríamos fritas se, no meio de tanto homem, alguma de nós cruzasse graciosamente as pernas, mostrando a... diferença!"

"- As mulheres serão comuns a todos os homens; cada um poderá ir com qualquer uma e ter filhos com quem quiser.
- E qual o meio de evitar que todos os homens queiram a mais bonita e tentem papá-la?
- As feias e mal acabadas ficarão ao lado das mais bonitas e quem quiser as bonitonas terá que satisfazer primeiro as feiosas.
- (com ar desconsolado) E nós, os velhotes, como nos arranjaremos? Se tivermos de 'traçar' primeiro as feias o nosso... entusiasmo murchará e como é que vamos dar conta das bonitonas?"

"De acordo com o decreto, os primeiros a provar os brotinhos serão os velhotes e feiosos; enquanto nós executamos o trabalho com os brotos vocês ficarão de mão no... queixo, esperando pacientemente".

"Um Rapaz - (suspirando aliviado, dirigindo-se à moça) Muito obrigado! Você me prestou um valioso serviço! Você terá todo o meu reconhecimento, que não é pequeno!"


II) The Dean Martin Show - título depois mudado para The Dean Martin Celebrity Roast - era um programa exibido pela rede NBC. Gravado em um salão de buffet em Las Vegas, cidade proibida, resultava numa legítima arena da comédia de insulto. Na edição de 18 de outubro de 1973, a vítim, er, homenageada foi a grande Bette Davis, que tomou alfinetadas certeiras de amigos da onça como Vincent Price e Henry Fonda. Algumas das pérolas:

"After several meetings he [Jack Warner] sent Bette for her first test. The result was positive and they named the kid Jack Junior."

"You know, Bette has always suffered in every picture she has ever made. When I appeared with her in 'Elizabeth And Essex' she gave up her beauty. In 'Dark Victory' she gave up her eyesight. And in 'The Virgin Queen'..."

"But there's still a very bright future for Miss Davis. Because with the advent of television a whole new field of unemployment is opening up for her."

"Here's a telegram I forgot to read before. It's from the National Association of Tobacco Manufacturers: 'Dear Miss Davis, we want to thank you for promoting the use of cigarettes in your films. No other actress swings her butt the way you do.'"
[trocadilho intraduzível entre butt = "bituca; cigarro" e butt = "bunda"]

"A star is a lady who gets some million dollars for doing on the screen - as you well know, Dean - what certain other ladies get only 20 dollars."

O curioso é que no final do evento o saco de panc, ops, convidado ia ao púlpito e devolvia as farpas. Na inesquecível e imponente voz com sotaque de Massachusetts, ela declarou o seguinte de um dos participantes da mesa, o humorista negro Nipsey Russell:

"I want to thank Nipsey Russell for being here. Nipsey is one of our great civil rights leaders. As a matter of fact, Stepin Fetchit once called Nipsey an 'Uncle Tom'."

III) Este vídeo. E me refiro estritamente às imagens. Experimentem assistir com o som desligado. É praticamente um herdeiro da escola Tex Avery de innuendo sacana desenhado.


IV) Um colega meu da época da faculdade, um dos sujeitos mais inteligentes e engraçados que conheço, estava numa fase barra pesada do mestrado e resolveu desabafar, meio em tom de piada, com o orientador:

- Não dá mais, Lino, é muita pressão. Vou largar tudo e montar uma barraquinha de comida típica.

- Que situação difícil, rapaz. Isso vai ser chato para sua família. Já tem aquela sua irmã que é atriz de teatro, né?


* * *

E concluo deixando a modesta proposta: da próxima vez que escreverem algo, deem uma chance à elipse.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012