
O Máiquel (argh... Jesus!) parecia ter um Desculpe qualquer coisa tatuado na acidentada testa de Cro-Magnon. E no traseiro acostumado a pontapés, um Agradecemos a preferência,
desses de churrascaria com telão para transmitir jogo do Brasileirão.
Ele tinha uma apagada e quase enfermiça cor roxa comum aos afogados e ao
papel celofane de gosto suspeito.
Conheci-o quando fazíamos
curso de montagem e manutenção de computadores no SENAC, ali na Tristão
Gonçalves. Foi em uma ocasião, na cantina, eu mordiscando um oleoso pastel
de queijo que ensopava o guardanapo, que o esquisitão dirigiu-se a mim
pela inaugural vez. Eu sentava ao lado dele em uma das bancadas, na sala
B4, os pares de alunos que observavam as CPUs de macarrônicas vísceras
expostas, como numa aula de anatomia, tudo sob a veemente iluminação dos
retângulos fluorescentes do teto. Essa proximidade geográfica deve
tê-lo encorajado. Mau sinal. Em clima de confidência, ele contou que
estava com dificuldades, se eu poderia esclarecer tal dúvida. Por que
não fala com o professor, anta?, pergunta a esfinge. Em vão.
Rapaz,
só sei que o hiena Hardy ficou de tramela solta e importunou-me com um
resumo não-solicitado de sua vida. Descobri, e não me orgulho disso, que
se tratava d'O pobrinho batalhador. Do tipo que se intimidava com a
catraca high tech que permitia nossa entrada no prédio pela
identificação do polegar encostado numa telinha de cristal. No infame
covil em que morara com a mãe solteira, dois irmãos e uma irmã, um menos
promissor que o outro, apelara, em deprimentes paródias de almoço, a um
copo de aluá com uma lata de ervilhas fora do prazo de validade. A mãe,
sem tostão nem profissão e desesperada, pensou até em envenenar
piedosamente (?) as crias com cicuta, estricnina, o diabo. Narrativa
pedestre e desinteressante, é óbvio. Foi salvo desse cotidiano de
letra de rap ao ser amadrinhado por uma dondoca, tia distante já meio
que enjoando do caviar e de Bariloche. A matrona endinheirada, sucesso
no ramo da confecção, escapou do tédio quando virou moda no seu círculo
de amigas a filantropia publicitária, como anteriormente haviam sido
moda os estofados em tons de sépia, os bibelôs de material reciclado, os
livros de Khalil Gibran e o penteado da Ana Maria Braga. Um arremedo
desses programas de auditório nos quais o cara pega um
portador-de-necessidades-financeiras-especiais e custeia reforma da
casa, cesta básica, aparelho de estampar camiseta, giro de limusine,
banho de loja, manicure, veterinário. Era ela quem pagava a mensalidade e
auxiliava o pequeno Máiq a conquistar as tábuas do monte SENAC.
Os
meses passaram e vieram os exames finais. No primeiro deles, o cidadão M
apareceu trajando uma máscara de borocoxô que era um caso sério.
Verdadeiro cão hidrófobo esperando injeção letal, resto de gato amassado
com marca de pneu no dorso. Época atarefada no armazém em que
trabalhava, explicou-me, nervoso. Estudara mal e porcamente para os
testes práticos. Calma, relaxa, eu disse, esforçando-me para engolir um "seu trouxa".
Uma dupla era sorteada e ia para uma bancada lá diante da turma
inteira, onde estava um dos gabinetes de lateral aberta trazidos pelo
grande professor Sérgio (grande mesmo: ótimo docente e mais de 1,90 de
altura). A missão, achar o defeito que impedia a máquina de iniciar
corretamente. Fui com o Rafa à mesa de operações. 2 minutos.
Cronometrando. Valendo. Concentração agora. Ei, o que é aquilo? Um
jumper encaixado nos pinos em posição 2-3, mas o certo seria em 1-2.
Muito fácil.
- Tempo esgotado. Qual o diagnóstico, minha gente?
Respondemos.
- Experimentem.
Liga estabilizador. Aperta botão Power. O reconfortante e aprovador barulhinho do bip.
- Excelente. Voltem a seus lugares.
O
ratinho assustado teve como companhia a garota que sempre chegava
atrasada e nunca puxava conversa com alguém da classe. Tinha uns cabelos
negros como a asa da graúna, um derrière imponente e maciço como uma
Bastilha e uma comissão de frente herdada de alguma divindade
babilônica. Rapidinho, botaram nela (epa) o apelido de Zilda. Boazilda,
Gostosilda. Depois, espiando as assinaturas da lista de presença que ia
de mão em mão, vimos que se chamava Karina. 2 minutos. Cronometrando.
Valendo. Inclinados sobre o paciente, trocavam olhares clínicos de E
então?. Nada. A fronte do bosquímano perlava-se de suor, um bolo obstruía-lhe a
garganta. E pouco ajudava a visão daquele pedação de mulher recendendo a
loção, curvada acima do amontoado de hardware, o avantajado
busto saltando da folgada blusa estilo cigana. Ele mirava os fios em
amarelo-preto-vermelho, mirava o nicho do par de frutões.
Mirava a bateria de lítio, mirava os frutões. Os pentes de memória RAM,
os frutões. Conectores do HD, frutões. Barramento PCI, frutões.
Chipset, frutões.
- Tempo esgotado. Qual o diagnóstico, minha gente?
Um silêncio atordoante. Pressão demais. O mico Máiquel explodiu:
- O sutiã da Zilda é verde-malva com uns floreados em relevo.