domingo, 28 de março de 2010

Vinte anos esta noite

Ali circa início de 1983 - período do abajur cor de carne, de acordo com uma profecia asteca e uma centúria de Nostradamus - aconteceu-me um negócio extravagante. Nasci. Empurrado para aquele mundão de novidades, eu observava o perímetro. E rabiscava anotações, em segurança numa fralda e pendurado em uma das sérias e pudicas tetas de mamãe. Era um cenário pitoresco. Grandes répteis, mainframes e monitores de fósforo verde andavam sobre a terra. Desconhecidos apertavam-me as bochechas. Celebridades com um gosto bastante duvidoso para penteados e maquiagem. Os da indústria fonográfica insistindo nos backing vocals em ôôô, nos sintetizadores e no canto falsete. Clipes abusando do efeito gelo seco, de quadriculados preto-e-branco e de precárias aplicações de chroma key. Pale Shelter e Overkill, musiquinhas da moda. O jurássico rádio-relógio no topo da obesa geladeira. A moeda era cascalho. Brinks, era o cruzeiro. O presidente Figueiredo era peça rara. Em abril, no pasquim que os caros amigos adoram odiar, foi publicada a inesquecível matéria do boimate. Em maio, Playboy com Luiza Brunet na capa. Em junho, entrou em cartaz um bom filme, WarGames, em que o Matthew Broderick se encrencava com os sisudos protagonistas da Guerra Fria, grávidos de ogivas nucleares; e a marcante sentença no final:


Falar nisso, no Império do Kremlin, reino das robustas mercearias e da vitoriosa economia planificada, a população satisfeita com a realidade do socialismo e dedilhando balalaicas, dançando trepak, brindando com vodka no centro de Moscou e buzinando sua frota de Lada 1500, enquanto caças MiG-31 aprontavam-se para formar no céu o contorno da foice e do martelo. Правда. Gorbachev com a nódoa na careca. Numa tarde de agosto, deitado esplêndido no berço, estava eu, um prodígio de bebê, ruminando uma tese que viabilizaria a cobiçada fusão atômica; quando fui interrompido pelo triângulo de um vendedor de chegadinha; jamais recuperei a linha de raciocínio. Em setembro, o Black Sabbath lançou, talvez em homenagem a mim, o álbum Born Again. Homenagem suspeita, porque o trabalho era fraquinho que nem sopa do Lar Torres de Melo. Ronald Reagan e suas piadas, reagags, confundindo Jesus com Genésio, tupi com tamoio e Brasil com Bolívia. 2 Alemanhas. Da da da. 99 Luftballons. VHS e Betamax. Paletós de ombros estapafúrdios e justíssimas calças imitando pele de onça ou de zebra eram o total eclipse da sensatez. Sigue Sigue Sputnik, Eurythmics, Devo, The B-52's. Pancadaria demais em show de ska britânico. Os gladiadores do metal farofa sacudiam suas cabeleiras parafinadas, solavam epileticamente em guitarras flying V e emitiam os habituais gritos de rachar taça. Poucos ainda lamentando a Copa de 82. A situação dos fugitivos de Cuba, la isla bonita dos filhos da revolução, inspirando um remake de Scarface com Al Pacino e Michelle Pfeiffer. Cuando salí de la Habana, ¡Valgame Dios! Molecada verminando na geração 8-bits. Galaga, Pitfall, Enduro, Alex Kidd, Castlevania, Bomberman, Duck Hunt. A galera do pós-punk e suas depressões e darkzices em ré bemol devidamente remuneradas em dólares e premiadas com Disco de Platina. A rua em que morávamos, austera e banal, próxima às paralelas de uma estação de trem e à irrequieta avenida em que pipocavam infrações de trânsito e letreiros de neon. Uma solitária amendoeira de ampla sombra era a sentinela da esquina, convidava aves canoras, desafiava os postes da COELCE e amparava casais de namorados interessados em bolinagem. Nosso vizinho da esquerda era o Seu Hermínio, que vivia com uma parentada, caminhoneiro veterano que me deixava tirar onda, new wave, na boléia da enorme carreta. Lassie, a cocker spaniel metida a valentona que nos acompanhou por longas 16 voltas ao redor do sol. A tia Isaura [RIP] enviava dezenas de postais de Belo Horizonte. Meu (quanta petulância!) quintal, quartel-general de travessuras, tinha uma importância maior que o canal do Panamá, Irã-Contras, Chernobyl, as Diretas Já, a proliferação da AIDS, o sindicato Solidarność e a descolonização africana. Buliçoso, adquiri mania de desenhar com crayon e lápis no caderno pauta dupla, na mesa, na parede. Sujei e sujei o chão com massinha de modelar. Ploc Monsters, dindim de coco, bala Soft, chocolate Lollo. Numa briga, o pirralho acertou o adversário com um bilboquê. Achava maricas as figurinhas Amar É... ("... não tá pra peixe", dizia a piada; nem vi graça; abre a porta que ela passa). A campanha 1984 da Apple. Disquetões de 5¼''. Linguagens de programação em evidência midiática eram COBOL e BASIC. Microtec, Unitron, Prológica. Leite fervente transbordando na cozinha. A convecção vulcânica de panelas contendo aipo, beterraba, aspargo, brócolis, quiabo, e o forno burilando um fricassê de vitela. Da fila de LPs do pai, àquela altura mais magro e menos calvo, Glenn Miller, Ivanildo Sax de Ouro, Ray Conniff, Xavier Cugat. A Olivetti Lettera cinza logo virou um brinquedo. Na estante, também do jovem patriarca, enciclopédia Barsa, espiões de Ken Follett, calhamaços relacionados a gramática, a religião e a Direito. Advogar, o ofício do homem; ralava em dois empregos; ele que me alfabetizou, antes da escola particular; meu herói nacional. Nesse papo de leitura, eu me contentava com gibis do Pateta. Malandros adultos - 14 ou 15 de idade - às vezes apareciam com uns tais catecismos de Carlos Zéfiro, camuflando-os dentro de títulos da coleção Vaga-Lume. Alguns até se arriscavam em visitas ao Cine Jangada. Nas festas da família, desfile de camisas US Top e de vestidos balonê, razoáveis bebedeiras, tiazonas mexeriqueiras cacarejando críticas à atuação da Malu Mader em recente capítulo da novela Ti Ti Ti, machos-de-tacape preocupados com inflação e queda de poder aquisitivo ou reclamando do preço da gasolina e dos gastos com o Monza na oficina, partidas de damas gamão ludo Genius PulaPirata pega-vareta dominó, petiscos da culinária hardcore do distante e folclórico sertão, a importuna piscadela na pose para foto, primos de tênis Conga e primas de gigolete pondo para rolar no som uma fita com gravações de: Lado A) Cyndi Lauper, a garota do Time After Time e Lado B) Ultraje A Rigor, os matusquelas que bagunçavam a quermesse. Numa dessas, girei vinil da Xuxa ao contrário, para ouvir as mensagens satânicas. Passeávamos em parques. Íamos a la playa, asa delta era diversão de esportistas temerários, Ícaros do litoral, e aparato de banhistas ousadas, Afrodites de bronzeador. Os momentos guardados em monóculos. Vassourito, o apelido óbvio que me puseram. Pior foi com a menina que rebatizaram de Adelaide Anã Paraguaia. Criança não perdoa. As memórias absorvidas da corpulenta e desengonçada televisão da sala, impossível citar todas, entre contemporâneos e reprises. Kate Mahoney, Xerife Lobo, Dallas, Super Máquina, Chacrinha, Pole Position, Lagoa Azul, Thundercats, Juba & Lula, Miami Vice, Zé Colméia, Jetsons, Punky Brewster, Cavalo de Fogo, O Elo Perdido, Krull, os japoneses, A Teia De Charlotte, Caverna Do Dragão, Pantera Cor-de-rosa e seu eficaz tema composto por Henry Mancini, o piano tristonho que encerrava os episódios do Incrível Hulk, loja A Esmeralda - o gerente endoidou -, vamos à Casa Pio, Cabaré Do Barata, véi Barbosa, MacGyver, Kissyfur, Pedro de Lara, Elke Maravilha, sereia Madison, Benji, He-Man, Tron, Indiana Jones, Flashdance, anime do Pequeno Príncipe, Roletrando (po**a, Silvio), Sessão Aventura, GP de Mônaco, juiz Margarida, Corey Feldman, Molly Ringwald, Bud Spencer & Terence Hill. Depois, foi época de se assustar com formigas gigantes, A Mosca, A Fortaleza, A Coisa, Sexta-Feira 13, O Exorcista, piranhas voadoras (?) e dobermans. A safra de saudosas comédias de sacanagem, Porky's, Almôndegas, Férias Do Barulho, A Primeira Transa De Jonathan, O Último Americano Virgem. Boicote vermelho nas Olimpíadas de 84. Cometa Halley. Menudo. Kátia Cega. Sarajane. Candidato a vereador discursando em cima de lata de querosene. Fiscais do Sarney, VSF, maranhenses me mordam, que troço patético do cacete. O kaboom do ônibus espacial Challenger. O aguilhão do merthiolate no joelho arranhado. Lancheira dos Comandos Em Ação. Papel carbono. Kim Wilde e Laura Branigan, as beldades que me arrastaram para o inferno-paraíso das paixonites precoces e estupidamente ingênuas. Acidente com o Césio-137. Constituição de 88. O escritor esquisitão presenteado com uma fatwa. Jornais sensacionalistas deram destaque a um irrelevante confronto estilo Fla-Flu provocado por meia dúzia de baderneiros amarelos na praça Tiananmen em 1989. Caiu a reputação do atleta Ben Johnson. Caiu o Muro de Berlim.

Pausa para tomar uma Mirinda. Que esse esquema narrativo, extenso painel com recortes de um assunto separados por vírgula ou por ponto, requer um tanto de preparo físico.

E agora, um salto para 2003, no mesmo dia de minha estréia por essas bandas. Eu cursava faculdade. E o salário, ó. A White House chefiada pelo George Wacky Bush. Começava a invasão do Iraque. Motivo oficial, as comentadíssimas armas de destruição em massa. Ambígua efeméride no meu aniversário. Continua curioso ver os sites e noticiários que mencionam a data. Ou folhear almanaques e livros de História e, shazam, ela ressurge, em fonte Garamond ou Arial tamanho 12. No restinho daquela quinta-feira, em outra residência, em outro bairro, em outro século, em outro milênio, quase que em outro convulsionado planeta, eu jantava empanado de frango com arroz parboilizado e refresco de tamarindo. Ao assistir, em outra TV, à cena em que soava um alarme de ataque aéreo na região para lá de Bagdá, foi como se ele anunciasse: Vinte anos esta noite.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Invasores, Bits, Carros, Surf, Dinheiro

domingo, 31 de janeiro de 2010

Imaginação: modo de usar

Lembrei o trecho de uma aventura do Sherlock Holmes em que o arguto detetive falava de um certo uso científico da imaginação.

Pergunto: Que ilusões temos vontade de dinamitar? Que beleza imaginativa estamos dispostos a destruir?

Que bando de cutias esses naturalistas e iconoclastas vulgares, com seu ceticismo de feira de Acari. Que espécie de bicho, ambicionando afetar superioridade, murmura que Ingrid Bergman e Ginger Rogers não eram tudo aquilo? Que elas também tinham que cumprir as obrigações malcheirosas no banheiro, que a frescura e a pose delas - o que os alienados pela mídia chamam de glamour - reduziram-se a meros e lúgubres despojos em cemitérios, zZzZz, que sono. É a mesma laia de energúmeno que se acha o espertalhão por pensar nos anônimos pedreiros de Tebas, a das sete portas. Não vejo graça nisso. Cabeça-de-porongo que leu meia dúzia de resumões do tal Charles Bukowski ou assistiu ao DVD dos Detentos do Rap e já quer sair por aí distribuindo sopapos na cara das convenções, mano, porque ele foi além da cúpula do trovão da rotinazinha do flat e agora saca qual que é a do sistema. Tá ligado que a revolução não será televisionada. O povo do gueto mandou avisar. Tenso. Vocação para Didi Mocó arrancando pedaços de parede e debochando dos cenários de isopor do Projac. É a miragem do realismo de berçário, o engodo do temperamento crítico exacerbado. Mas ganha pontos comigo (grandes bosta) quem estourar o balãozinho vermelho de hélio dos lindos devaneios das utopias igualitárias, incomodando Mafaldinhas e atrapalhando os que pelo menos têm ideais e investem no sonho, né, people. E é esquisito, pois fica a impressão de um esquema trenzinho da alegria relativista, cujo ápice são os breguelhentos Cada um acredita no que quiser e Ninguém é dono da verdade.

Entediados do átomo e sequiosos da ficção de todo o mundo, uni-vos. Continua em franca e atiradora decadência nossa estima por lorotas que divertem, por futilidades lúdicas que podem até ser civilizatórias. Viajar alto observando aquelas formas microscópicas de flocos de neve. Ouvindo o comecinho de Under The Bridge, dos Chili Peppers. Visitando a coleção de carangos do Jay Leno. O hobby de estudar a mecânica das intrigas de um salão vitoriano durante os passos da valsa é mais crucial à condição humana que desembestar engajadamente pela estrada afora para entupir com rolhas king size - eu disse rolHas - o fiofó de vaquinhas e assim evitar que as emissões de bufa das mimosas agravem o aquecimento global.

E vou vivendo, tem gente que é útil e está morrendo. E então, vamos de screwball com o Cary Grant ou de documentário sobre cambalachos da indústria petrolífera? Ou, como diria uma buarquiana, depende do momento?

Arca de Noé, design inteligente, boitatá, perna cabeluda, Área 51, Valhala, Shangri-La, Atlântida, Avalon, gene egoísta, exu Caveira, estigmatas, flogisto, horóscopo, luta de classes, chupa-cabra, Amway, Ganesha, fantasma do Lombardi, teoria unificadora, talismã, pote de ouro no fim do arco-íris, conspiração sionista, malthusianismo, confucionismo, niilismo, estrabismo, Gran Turismo, cartilagem de tubarão, fractais, Uri Geller, Harry Potter, Avatar, baú do pirata Alma Negra, mão invisível do mercado. Devidamente embrulhados para presente. Escolham seu(s) favorito(s).

Símbolos. Muletas. Escapismo. Uma noção de ordem ou uma quebra de norma. Fantasia metódica. Delírio calculado. Nefelibatismo ensaiado. Mentirinhas brancas que apaziguam e entretêm. Credo quia absurdum.

Castelos no ar. Sempre haverá arquitetos para planejá-los. Ei, você: alguns dos que enfeitam sua existência, trazem coisas de magia, sei lá, à sua vida, talvez sejam do tipo que eu adoraria demolir. **CRAS!**. Elementar, meu caro.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Minha idéia de argumentação



Feliz Natal e próspero Ano Novo, bugrada. Exceto para a Suíça, cuja existência não faz o menor sentido. Pronto, falei. Não curtiu, pula no meu peito ou senta no colo do capeta. Eu fico desgraçado da cabeça. Mas mesmo assim, um beijo na sua alma.

sábado, 31 de outubro de 2009

God save the Queen

Londres de manhãzinha. Eu trajava um terno de gângster de película do Tarantino. Virara a noite na Brixton Academy, num show do Quim Barreiros, o mestre lusitano da polissemia. Camões é para os fracos. Meti o pé na carreira rumo ao Palácio de Buckingham. Tinha um encontro marcado com a fantástica e insuperável rainha Elizabeth II. Foi um agradável meeting regado a wit & fofoca. Misturamos Funk do Quadrado com Trafalgar Square, abadia de Westminster com bateria do Salgueiro, Thames com rio Cocó. A seguir, compacto dos melhores momentos do colóquio do plebeu com a majestade:

I) Amarrotado, arfante e fedendo a cigarro alheio, tive que improvisar para me recompor. Olha o decoro, meu filho. A Real Senhora cumprimentou-me com sua perene elegância e imponência de leão rampante de brasão. Dirigimo-nos para uma mesa. Um luxuoso desjejum nos esperava, utensílios gravitavam em torno de um bule imperial. A regra de ouro recomendava evitar obviedades do tipo elogiar a porcelana, o chapéu, o vestido de chiffon, o colar de ametista ou a intervenção cirúrgica que extraiu uma papada.

II) Apostei em amenidades. Como foi a última caça a raposa ou partida de whist, se ela ainda se destacava no críquete, na equitação, na esgrima. Baseado na experiência de tanto ler blogs de mequetrefes que acham estiloso poluir as frases com silly English, desviei para uma egotrip e confessei o que sofri, em meus dias de escrevinhador neófito, com a síndrome de Agepê ("Faz de conta que sou o primeiro"). Suava, teclava com violência e pensava, A-ha, enfim vou produzir o texto definitivo sobre ______. A tentação de ser original e desbravador. Nunca usei, porém, sintaxe de bêbado irlandês.

III) Falando nisso, informei-lha que em Pindorama - alcunhada de País do Futuro por um suicida estrangeiro - agora qualquer indigente oriundo de comunidades ribeirinhas ou classe-média com fumos de literato tem um blog. Dei dicas de uns bem ruins e constrangedores que freqüento por diversão. Ela riu quando descrevi uns tão sisudos e esforçados, mantidos por estudantes de Comunicação Social que confundem Lady Di com Lady Kate, musselina com Messalina, Elevador Lacerda com Genival Lacerda. E existem também os que crêem abafar na ironia ferina terminando sentenças com ahahahaus, rsrsrs, kkkkk ou !!!!!. O esquema é relaxar e mandar a turma dos seqüelados cheirar amianto ou plantar batata no Camboja. Ela, apreciadora das gaiatices da revista Punch, entendeu-me perfeitamente. Ser piadista de salão é nossa meta, isso sim.

IV) Citei a terrinha e ela recordou a ocasião da foto ao lado do presidente, o Rei Momo de Garanhuns. Não espalhem, ela me confidenciou que ele exalava um bodum de casca de mexerica. Expliquei que se tratava de um dos orgulhos nacionais, o miasma característico das camadas populares e dos camaradas populistas. Aliás, ela demonstrou guardar referências peculiares da nação-pandeiro. E tome-lhe comentar os quadros de Rugendas e do Debret, Hans Staden, Sir Pelé, biocombustível, licor de jenipapo, fubá, cacique Raoni com o Sting, anaconda, ipê, D. Pedro I, o Gurgel, Ronald Biggs, o filme The Boys From Brazil. À menção de bossa nova, engasguei-me de escárnio com uma torrada.

V) E lembrei uma das visitas dos Sex Pistols à pátria do carnaval. É, aquela bandinha, uma das piores da galáxia e que lançou em 1977 um clássico do punk rock em homenagem à querida Liz. Foi em 1996, eles velhotes e enrugados, como se esculpidos em Vitamilho com queijo parmesão, tirando onda do fato de que estavam ali apenas para garantir uns shillings para a aposentadoria. Como diria o finado jornalista sem diploma, ex-trotskista de bergère e tupiniquim exilado entusiasta da Margaret Thatcher: Waaaal.

VI) Fatal e infelizmente, veio à tona a política, com sua presença amálgama de verdureiro e graduando de Administração de Empresas. Veja, ilustríssima, sei que os bretões já passaram por maus pedaços. Guerra dos Cem Anos, Guerra das Falkland (contra os súditos do Carlos Gardel). Henrique VIII. Os telhados aterrorizados pelos vôos de V-2. A série de atentados em 2005. O incidente com o Jean Charles. As atuais invasões bárbaras. Cada um no seu calvário. Lá debaixo do Equador, a praga da moda, além da gripe H1N1, é o vulgar e muar bolivarianismo, xodó dos marxicólatras (marxistas festivos da escola Xico Sá). Imagine uma versão sul-americana das vuvuzelas. Sinônimo de primitivismo e de barulheira paleolítica. Much ado about nothing. Que vontade de arremessar uma máquina de refrigerantes na cabeça desse povo.

VII) E por falar em gentalha, desculpe, mas que negócio podre que armaram nos ônibus aqui, hein? A cambada da Igreja Universal do Reino de Sagan-Dawkins não tem senso de ridículo. Os que acreditam em elétrons continuam se considerando superiores aos que acreditam em anjos.

VIII) A egrégia dama fuzila: e você é reacionário, anarquista, esquerdista, maratonista, trapezista ou o quê? Essa é a charada de 1 milhão de libras. Sou de investir no que me soa sensato e de preservar o que funciona. Observe que, em outras épocas, os vendilhões do templo é que eram o status quo, em oposição ao subversivo Cristianismo. Escravidão era o cerne de um montão de atividades e de ambições, até aparecer o [michaelmoore]famigerado[/michaelmoore] capitalismo 2.0 com o canto de sereia de expandir mercados consumidores. Se sob as cores da Union Jack costume significa liberalismo e Lord Acton, advirto que na província de onde venho, atrasada e de alarmantes temperaturas, tal conceito degenera no grude indigesto que inclui coronelismo, nanny state e voto de cabresto. Conservadorismo tropicaliente. A longevidade e a difusão de uma prática nada provam. E, sim, às vezes é difícil-de-doer separar alhos e bugalhos de Barbalhos. O que merece permanecer, o que precisa ser reformado.

IX) Esses temas são chatos demais, prezada monarca. Assunto de maior valor é o que não falta. Os belos peitos de suas conterrâneas Lucy Pinder e Sammy Braddy. As aventuras de James Bond e o foguete da morte. Causos de solares mal-assombrados. Detetives lupa-e-cachimbo caminhando pelo fog. Passeios no London Eye. Ou o fenômeno Susan Boyle.

X) A fim de descontrair, perguntei qual era a semelhança entre Tom Selleck, Will Nogueira, professor Girafales, Super Mario, Hercule Poirot, Manuel Zelaya e Betty Friedan. "Torcem para o Manchester United?", chutou a soberana. "Boa tentativa!", menti. Eu disse a resposta e, após o natural delay feminino para compreensão de anedotas, ela começou a gargalhar de maneira nem um pouquinho britânica. Por causa de um chiste meia-boca? Só depois de minutos, ela quase sem ar e apontando para minha mão direita, percebi. Eu segurava, com o dedo mindinho levantado, uma xícara de café. Choque de civilizações. God save the Queen.

domingo, 27 de setembro de 2009

Naquela terça-feira

11 de setembro de 2001. Presença De Anita animara algumas noites de agosto. Em maio, fora lançado Crazy Taxi 2 para Dreamcast. Acordei cedo. Iria à 10ª Região Militar, na Avenida dos Expedicionários, tirar a carteira de reservista. Naquela manhã de terça-feira, caía um sereno aborrecidamente irregular que orvalhava as janelas do ônibus. No rádio, Marlon & Maicon, Destiny's Child, Os Travessos, Jennifer Lopez, Dido.

Cheguei. Estavam lá o desajustado e tatuado mascando um chiclete imaginário, o gordo de Botero com as orelhas cheias de brincos, o provável colecionador de camisas gola pólo listradas, o rasta de dreadlocks e coberto com as cores da Jamaica, o magrelo que detestava exercício físico, ahn, esse era eu.

Longa fila. Incrível. Um relógio de parede marcava 10:35 quando alcancei o guichê. A atendente era uma senhora com rosto de cachorro pequinês. Problemas com minha documentação, explicou ela. Eu teria que retornar no dia seguinte. O motivo da complicação burocrática, fiz a mim mesmo o favor de esquecer, usando o método Dilmão Estica-Lattes Rousseff de jogo da desmemória. Resolvi dar uma passeada pelo Centro, nas lojas de discos antigos.

Voltei para casa e já era de tarde. Deitado no sofá, o saudoso tio Francisco assistia, sem entender, a um filme dos doidões Cheech & Chong. Ele exclamou, com voz de enfisema: "Menino, olha a burrice do SBT. Espia só o jeito que datilografaram 'King Kong' na tela." Na cozinha, encarei o fogão e preparei uma gororoba para almoço. Guisado de camurupim, feijão, arroz com pirão, trapos de alface e ki-suco de tangerina.

Encerrada a refeição, subi para meu quarto. Liguei a velhusca TV meio detonada, que eu ganhara ao consertá-la à custa de porrada depois de especialistas terem-na desenganado. Emissora local, debate esportivo. Tom Barros dizia: "... é a máfia dos cartolas. A ação deles é nociva como a presepada que aconteceu agora há pouco nos Estadozunido." Que presepada? Zapeei os canais. Não demorou para que inteirassem o atrasado aqui do ocorrido. Plantões de notícias faziam a farra. Repepetitidas à exaustão as clássicas cenas dos aviões chocando-se com as duas torres. E correria, chamadas telefônicas desesperadas, uma fumaceira medonha, uns mais aperreados pulando dos edifícios. Nova York e seu momento de Beirute.

Sejamos francos. Pertenço a uma geração bombardeada (epa) por petardos do gênero Máquina Mortífera e Duro De Matar. Minha inquietação maior sobre a tragédia era decidir qual seria a trilha sonora perfeita. O Monte Calvo, de Mussorgsky? The World Keeps Turning, do Napalm Death? Difícil separar das ficções que tanto consumíamos. E sempre achei que Empire State colocava WTC no bolso em matéria de representatividade. Os delinqüentes miraram outros alvos emblemáticos, inclusive: Pentágono e Capitólio. No topo da lista de desconfiança, nervosinhos filhos de Mohammed que levavam às últimas conseqüências suas leituras do Corão. E veio a atmosfera de paranóia. O povo da torta de maçã assustado, temendo que surgissem, de dentro dos armários, monstros com explosivos colados ao corpo ou brandindo cimitarras, Kalashnikovs e bandeirolas com o crescente islâmico. Boatos macarthistas de que dali em diante, em qualquer lugar do planeta, se um falasse mal de artigo inapelavelmente de quinta categoria mas made in USA - digamos, teologia da prosperidade -, proferida a blasfêmia, abrir-se-ia sob o infeliz um alçapão conduzindo o suspeito a uma sala de interrogatório na Base de Guantánamo.

Uma referência que carrego dessa época é um sentimento de "Tomaram, papudos?" e "Bem feito! Parem de ser tão arrogantes." A gente bronzeada mostrando seu valor. Os galegos comedores de hambúrguer e de marshmallow mereciam aquilo. Atire o primeiro Qassam quem não teve professor que divulgava o evangelho antiimperialista. Todos sabíamos das histórias de falcões ianques que assoviavam alegremente Star & Stripes Forever ou o tema de Bonanza enquanto espetavam criancinhas árabes ou indígenas na baioneta na frente dos pais delas apenas por diversão. E desenho do Uncle Sam devorando o globo terrestre em panfletos da UNE. Virou moda tecer comparações com o ataque nuclear ao Japão. Intervenções brutais e arbitrárias ao redor do mundo, insistiam. Semearam vento e estão colhendo tempestade, mugiu um poeta popular cearense. Acusaram o saudita Osama. Corvo que deu suas bicadas iniciais durante a luta dos mujahideens contra a URSS, o boi da cara vermelha. Eu via-o, no esconderijo subterrâneo, o pinel entediado fumando narguilé e ouvindo El Arbi, do Khaled, no walkman amarelo. Cofiava a hirsuta barba, a qual abrigava uma colônia de fungos. Preocupado em sacar do turbante uma maneira de driblar o insuportável marasmo que o assolava no montanhoso Afeganistão, entre burcas e camelos. Declarou guerra ao lado de cá do Meridiano de Greenwich. Receptividade encontraria.

Lembro também os elogios do Carlos Chacal à insólita agressão. O músico Stockhausen atribuindo ao atentado a classificação de obra de arte. A proliferação de teorias conspiratórias. Em países esdrúxulos, os flagrantes - fake, comentavam - de seres amarronzados que comemoravam nas ruas a façanha. A Astrid Fontenelle apresentando um fofocário ao vivo e caprichando na indignação à la redação de pré-vestibular. Oportunistas antologias jornalísticas do terror, de Mão Negra a ETA, de Menachem Begin a Timothy McVeigh. Ivan Kyrillos, um dos brasileiros que morreram nos escombros. A indenização bilionária de Larry Silverstein. O pixaim reclamão ex-vocalista do Rage Against The Machine arremessando no colo da realpolitik americana uma fatia da culpa pelo desastre. As posteriores cartas com antraz. O álbum The Rising, do Bruce Springsteen. A estréia do 24 Horas. Uma entrevista com o sujeito cujo sobrenome os blogueiros sérios nunca digitam certo: Hobsbawm (terminando com M de mariola e não com N de nambiquara). Uma dupla de pretos, que se descrevia como radical marxist rappers, encrencando-se com o FBI por causa de uma capa de CD. A abertura do The Sopranos cortada na parte em que os finados prédios gêmeos apareciam. O temor de ser integrado ao Exército às portas de um possível conflito generalizado em combate ao terrorismo sem fronteiras. Que nada. A reação bélica restringiu-se, em tropas mil, à pátria armada do Caçador de Pipas. E meu certificado de dispensa de incorporação foi carimbado com a data 12 SET 2001.