quinta-feira, 22 de maio de 2008

Racionais

Na versão mais conhecida do incidente, Medéia trucidou os filhos em um ato de vingança premeditado e severamente calculado contra um marido infiel.

HAL 9000, o supercomputador do filme 2001: A Space Odissey, usando as frias operações lógico-aritméticas de seu cérebro de silício, bits para lá e para cá, elaborou um plano cheio de detalhes técnicos para eliminar os tripulantes do veículo espacial em que se encontrava.

O austríaco que dias atrás matou a esposa, a filha, o pai, a mãe e o sogro com um machado, no seu raciocínio de peculiar lógica para executar o massacre, parece ter considerado as premissas "estou falido" e "não quero entristecer minha família por causa disso" e concluído "logo, vou assassiná-los e eles nunca sofrerão com isso". Wiener blut. Sangue vienense. No famoso livro - mais comentado que lido, desconfio - do barbudão russo Dostoievski, o amadorzinho protagonista planejou apenas o assassinato de uma megera chinfrim e ainda fez c*g%d$. Mas o machadiano de agora foi metódico e violentamente eficaz na série de homicídios. O procedimento no serviço da chacina talvez esteja relacionado a um equivalente austríaco da tão falada eficiência de seus primos boches, os Siegfrieds e Wolfgangs papa-chucrute. Alguns daqueles primos, os da cruz gamada e dos delírios de Pinky & Cérebro, também deram uma boa amostra do que é o horror sistematizado (e em escala industrial) guiado pela fé na racionalidade bruta. A bitolação gravitando em torno do amoralismo e das teses saídas da manjada torre de marfim. O desejo de atribuir caráter científico a comportamentos passionais.

E observando a morbidez desses crimes recentes na Áustria, lembrei-me de um sujeito que se chamava Thomas Bernhard. Ele cuja acrimônia perambulava pela fatídica cidade de Viena. Ele que tanto escreveu (e que pouquíssimo li) sobre o que há de sombrio. Do mais sombrio e macabro que há no mundo, que é o que fica escondido nessa caixinha artesanal e intrigante que é a alma. Dentro dela, posto à prova, o monopólio da razão tropeça e erra feio. De acordo com a antiga lenda que acabei de inventar, o niilismo desabrido de Bernhard começou a medrar quando ele percebeu que seu nariz era uma triste figura semelhante a um morango. Hipótese verossímil.