terça-feira, 6 de maio de 2008

Labuta

(divagação inspirada pelo recente feriado em 1° de maio)

Morar em bairro lotado de povo humilde e batalhador (cidadania: a gente vê por aqui) é uma estranha experiência. Nos fins de semana, é aquela agitação. Uns rugindo louvores na igreja pentecostal, outros em casa, assistindo a shows de crianças cantoras, outros tricotando fuxicos nas esquinas, outros em botecos, provando a indigesta dobradinha de cachaça com espetinho de carne de procedência duvidosa, pivetes de vocabulário ultrachulo no futebol de rua, os grupinhos de adolescentes em que rolam tremendos queixos em cima das gatinhas (mui felinas, de bigode, peludas, ouvido entupido de cera, corpo hospedando protozoários), outros jogando baralho sinuca dominó, outros torrando boa fração da má renda de motoboy na máquina caça-níqueis ("Na próxima eu ganho!"), outros indo à praia com arsenais de vasilhas tupperware, outros embriagando-se em danceterias fuleiras, até que colegas de longa data, com os cérebros seriamente afetados pelo álcool, comecem a esfaquear-se ou a trocar tiros alegremente, outros - matusaléns com fuça de panqueca amassada - põem uma ancestral vitrola na calçada e permanecem horas na cadeira de balanço ou na espreguiçadeira, a ouvir, em volume estapafúrdio, antologias de forró de duplo sentido.

Minhas anteninhas de vinil já detectam a presença do manjado e pretensamente conciliador aparte, com direito a peculiar ortografia: "Pow véi, kda 1 faz u q quizer da vida neh, mew?!"

Curioso notar que alguns exemplares dessa pitoresca fauna são os mesmos que, durante os dias de labuta (a luta, o serviço ou o trampo, como eles chamam), encarnam a figura do prisioneiro remador de galé. Ofícios insalubres ou apenas medíocres e nada instigantes, com uma carga horária extenuante. Além de ambiente incômodo, condições estressantes, salários irrisórios e forçada convivência com pessoas invariavelmente estúpidas e desagradáveis.

Engraçado que na brechinha que lhes é concedida periodicamente, um intervalo tão curto, fico com a impressão de que existe uma espécie de ímã que os atrai, para preencher os momentos de ócio, às atividades predatórias e/ou autodestrutivas. Vão a festas hediondas com freqüentadores idem, que adoram trocar porradas e criar confusão, passam da conta na pinga e rasgam o ventre de desconhecidos com uma peixeira. Ou, também etilicamente turbinados, saem por aí dirigindo fubicas ou lambretas.

E nem venham com a ladainha de que tenho implicância com a classe social X. As mencionadas atitudes são verificáveis em diversas castas. Esqueçam as origens, se quiserem. É lícito imaginar as situações anteriores para habitantes do topo de uma hierarquia, bla bla bla.

Tal comportamento é bastante revelador de como o ser humano, de subúrbios ou de mansões, é péssimo em lidar com eventual ociosidade, assumindo quase sempre posturas cretinas e inanes, espelho de sua própria futilidade. Seria um desastre se essa farândola - de cabeças mais vazias que estômago de retirante - dispusesse de maiores hiatos na rotina profissional. Rebelião das massas. Eles parecem ter um sério problema com regras e limites.

Um bom sucedâneo para chicote de jegue estradeiro que as sociedades têm, para controlar a fera que há por trás de cada N° de CPF, é o trabalho. Os bichos seguem numa disciplina espartana, com suas tarefas a cumprir ditando os passos. Uma porção deles chega a crer que desempenha funções importantes, mas talvez a única relevância seja manter seus cerebrozinhos de ogro ocupados. O que é grande façanha, sim. Temos amostras do que esse povaréu pode provocar se não estiver eficientemente agrilhoado a obrigações do tipo terminar faxinas, soldar componentes de placa-mãe, digitar valores em planilhas, alcançar meta de vendas, abrir e fechar portões, checar recibos, carregar e descarregar caminhões, fabricar penicos.

Lembrem-se disso quando souberem de catiguria reivindicando redução de jornada.

O controverso barbudo George Bernard Shaw certa vez escreveu: "A escravatura humana atingiu o seu ponto culminante na nossa época sob a forma do trabalho livremente assalariado." Mas o diabo é que concordo, sem ironia, que deve ser assim. [Nós] Os vassalos do capital e seu potencial de baderna merecem tratamento à rédea curta, senão a avacalhação impera. E um emprego é a arma perfeita para a missão.

A quem acha que aproveita a folga do batente em programas, digamos, com menos cara de Regina Casé, desejo boa noite e boa sorte. Na verdade, não dou a ínfima. Agora, sessão auto-ajuda. Sejamos escravos bem-resolvidos e pensemos que trabalhar serve para matar o tempo, fornecer uns trocados e dar a ilusão de sermos úteis.

Encerrando o expediente, breve e ótimo diálogo do filme Duck Soup, dos Irmãos Marx:

- The Department of Labor wishes to report that the workers of Freedonia are demanding shorter hours.
- Very well, we'll give them shorter hours. We'll start by cutting their lunch hour to 20 minutes.