terça-feira, 8 de fevereiro de 2005

No carnaval, Juízo - Parte II

Os anjos (ou demônios) alados continuavam sua obra implacável. Moribundos contorciam-se de dores pelo chão, com pungentes gritos de pavor. Dos buracos dos olhos vazados escorrendo grossas lágrimas de sangue. O fenômeno rapidamente chamou atenção. Os gatos pingados que ficaram em casa corriam para as calçadas ou espiavam curiosos pelas janelas dos condomínios. Tudo era tão hediondo que quem via demorava a atentar para o real significado. E a algazarra complicou. Crianças chorando esgoeladamente, histéricas mulheres como que arrancando os cabelos, exaltados caíam de joelhos no asfalto e principiavam a debulhar um rosário de orações incoerentes em línguas estranhas. Todos eles foram atingidos pelo fio das espadas. Para os eleitos não havia o menor resquício de dúvida. O Dia chegara. O Fim. O Arrebatamento. O Juízo.

No rebanho dos escolhidos estavam (pelo menos eles próprios assim se consideravam): os que engordavam o dízimo da Igreja Universal do Reino de Deus S/A com cheques e jóias; os abnegados irmãos que nos admoestavam nos terminais de ônibus sobre as coisas de Deus e do Diabo; os homens santos que promoviam ressurreições ao estilo Lázaro na Praça José de Alencar; os menininhos que, após a missa, iam com o padre a um lugarzinho secreto para sentir a Pomba (esse pássaro é uma figura que remonta às celebrações cristãs primitivas, nas quais a ave representava o Espírito Santo; é só lembrar o episódio em que, quando João Batista batizou Jesus Cristo nas águas do rio Jordão, o Espírito Santo sob a forma de uma pomba pousou na cabeça do Ungido).

Cristãos fiéis, com um sorriso exultante e pleno contentamento, apareciam nas ruas para comemorar esse dia tão aguardado por tantas gerações. Alguns com filhos nos braços, explicando aos pequeninos que não tivessem medo. Um pastor evangélico bradava: "Deus é infinitamente sábio. Implantar Seu reino eterno com toda honra e toda glória justamente no período do supremo festim orgíaco de Satanás! Neste exato instante, em cada recanto do planeta devem estar ocorrendo tais e quais cenas como estas! Arrependei-vos! Ainda há tempo! Vou ter que cobrar um pouquinho a mais, devido à situação de urgência!" Ele e outros também tiveram a visão ceifada, sem clemência, pelas lâminas justiceiras.

Mas eis que surge, de dentro do mesmo vórtice que cuspiu os arautos da morte, uma nuvem alvíssima e, sobre ela, proeminente, estava um vulto de braços abertos. Um clangor de trombetas estrugiu tão brutalmente nos tímpanos dos que por ali estavam que daria para crer que ele retumbou até os ares do Cariri. Seria possível? Era Ele que finalmente voltava. Depois da tempestade, a bonança. Para os felizardos, claro, sem débito no carnê das virtudes. Os poucos que haviam preservado o dom da visão desmaiavam ante o prodígio.

Em verdade, era ele.

George Lucas. Uma das grandes personalidades do cinema norte-americano.

(seu discurso foi traduzido simultaneamente por um intérprete, através de um equipamento de som que repercutia pela avenida inteira)

- Aham... Minhas senhoras e meus senhores, bom dia. Desejo que tenham se divertido com mais um evento realizado pela Industrial Light & Magic (ILM), a divisão de efeitos especiais da LucasArts Entertainment. Querida platéia, espero que logo percebam o inefável privilégio que tiveram, participando de um arrojado e ambicioso projeto, acalentado por meu staff há anos, inédito e sem precedentes na história do entretenimento em massa. Vocês acabaram de ver, diante de seus narizes achatados, material de altíssima vanguarda, tecnologias utilizadas em superproduções como Star Wars (Guerra Nas Estrelas) e Back To The Future (De Volta Para O Futuro). Empregamos no show o que é top de linha atualmente em ilusões geradas por computadores, maquiagem, cenografia, holografia, luzes, projetores de imagens, trucagens com espelhos, transparências, películas (como as colossais usadas para isolar essa avenida), enfim, uma parafernália cuja compreensão está além de suas mentes terceiro-mundistas, hehehe. Fantástico. Como é que vocês dizem, hã, em espanhol? "Muy rico", acho. Si, muy rico. Pois bem, gostaria de começar os agradecimentos. Ao ilustre e visionário prefeito desta cidade. Aliás, vocês devem estar se perguntando: por que selecionaram nosso vilarejo, entre tantos? Um dos sócios majoritários de minha empresa já passou férias aqui. Na ocasião, ele se afeiçoou bastante a uma jovem acompanhante local, recomendada por um taxista e pelo gerente do hotel em que ele permaneceu. Era uma graça de menina, ele dizia, 12 anos de idade. Com aquele trabalho, ajudava a humilde e numerosa família. Imagine o desalento dele quando, em outras férias, contaram-lhe que sua infantil amante fora assassinada por vendedores de entorpecentes. Lamentável. Ao concebermos esse projeto, ele não pensou duas vezes e sugeriu a cidade de sua falecida amada para o espetáculo. Foi uma bela homenagem. Sou grato também aos nativos que, em troca de módicos cachês, aceitaram atuar como figurantes mutilados pelos nossos vingadores, realmente assustando os que não sabiam da brincadeira (nesse momento, pessoas descolavam suas feridas, feitas de uma camada de plástico; ex-mutilados e ex-mortos davam risadas e recebiam tapinhas de felicitações nas costas). Saudações aos nossos Cavaleiros do Apocalipse (os citados postaram-se lado a lado, montados sobre seus cavalos mecânicos e tiraram suas máscaras, acenando para o respeitável público; seus rostos eram de canastrões hollywoodianos). Ok, muito obrigado a ustedes. Tenham um excelente restante de Carnaval. Adios, muchachos!

(fortes aplausos de todos)