domingo, 6 de novembro de 2016

A ponte sobre o Drina

Trechos de A Ponte Sobre O Drina (1945), de Ivo Andrić.


Naquele Verão de 1914, quando os senhores dos destinos humanos levaram os homens da Europa do tablado do sufrágio universal para a arena, já pronta a funcionar, do serviço militar não menos universal, a cidadezinha de Visegrad forneceu um pequeno mas eloquente exemplo dos primeiros sintomas de um contágio que depois iria estender-se a toda a Europa, para logo a seguir se espalhar por todo o mundo. Estava-se num período que estabelecia a separação entre duas épocas da história humana mas em que uma pessoa podia distinguir mais facilmente o fim da época que se encerrava do que o princípio dessoutra que estava a nascer. Então procurava-se ainda uma justificação para a violência e ia-se pedir ao tesouro espiritual do século passado qualquer nome pomposo para mascarar os actos de selvajaria e a sede de sangue.

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Aquela hora da noite as ruas principais estavam iluminadas, porque a iluminação elétrica tinha sido inaugurada na Primavera desse ano.

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Na altura em que a festa ainda estava a começar, apareceu na orla do prado um grupo de gendarmes, com os uniformes negros e as armas a brilhar ao sol da tarde. Eram em maior número do que era vulgar nas patrulhas que regularmente apareciam nas feiras e arraiais e dirigiram-se logo para o sítio onde estavam os músicos a tocar. Um após outro, desordenadamente, os músicos foram-se calando. O kolo oscilou e parou. [...]

Desiludido e perplexo, o povo ia regressando de Mezalin pela estrada larga e branca; quanto mais se aproximava da cidade, mais frequentemente se ouviam vagos e assustados murmúrios acerca do assassínio, nessa manhã, em Sarajevo, do arquiduque Francisco Ferdinando e de sua esposa e da perseguição que por esse motivo se admitia geralmente que os sérvios viessem a sofrer.

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Na cidade quase só se viam soldados. Às 9 da noite, quando as cornetas tocavam, nos acantonamentos de Bikovac e nos grandes barracões junto da ponte, as notas melancólicas do toque de recolher austríaco, as ruas ficavam quase completamente desertas. Os tempos estavam maus para os jovens amantes, que tinham dificuldade em encontrar-se e ter conversas sem dar nas vistas.

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Nos últimos dias de Julho, a tempestade desabou sobre a fronteira, essa mesma tempestade que, com o tempo, havia de alastrar pelo mundo inteiro e decidir do destino de muitos países e cidades como decidiu do da ponte sobre o Drina.

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É certo que sempre tinha havido secretas inimizades e despeitos, intolerância religiosa, baixeza e crueldade, mas também sempre houvera coragem e camaradagem, além de um sentimento de equilíbrio e ordem, que mantinham todos os instintos vis dentro dos limites do suportável, e que, ao fim e ao cabo, os acalmavam e os submetiam ao interesse geral da vida em comum.

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Desde o dia a seguir àquele em que foi declarada guerra à Sérvia, uma seção de schutzkorps começou a patrulhar a cidade. Esse contingente, armado à pressa com o fim de ajudar as autoridades na caça aos sérvios, era constituído por ciganos, bêbados e outros indivíduos de reputação duvidosa, principalmente aqueles que há muito tempo andavam de candeias às avessas com a sociedade e com a lei. Um tal Huso Kokosar, um cigano sem escrúpulos nem ocupação definida, que na sua mocidade perdera o nariz em consequência de uma doença vergonhosa, era quem comandava aqueles maltrapilhos, que não iam além de uma dúzia, armados de carabinas Werndl, antiquadas, com umas baionetas muito compridas, e armava em senhor absoluto no bairro do mercado.

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Os três homens tinham sido condenados à pena capital, após julgamento sumário, porque houve quem testemunhasse, sob juramento, que tinham sido vistos a fazer, de noite, sinais luminosos para a fronteira sérvia. Para exemplo, a execução ia fazer-se em público, no largo fronteiro à ponte.

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Estavam sempre a chegar mais tropas à cidade e, atrás delas, munições, víveres e equipamentos, que vinham não só por caminho de ferro, através da linha de Sarajevo, cujo movimento era extraordinário, mas também pela velha estrada que passava por Rogatica. Cavalos e carros atravessavam constantemente a ponte, de dia e de noite, e a primeira coisa que se lhes deparava eram os três homens enforcados na praça. E como, normalmente, a frente da coluna ficava entalada nas ruas apinhadas, acontecia que a retaguarda tinha de fazer alto no meio da ponte ou na praça ao lado da forca, à espera de que o caminho ficasse desimpedido. Cobertos de poeira, afogueados e roucos de tanto gritar, os sargentos passavam a cavalo entre os carros e os cavalos ajoujados, fazendo sinais desesperados com as mãos e jurando em todas as línguas da monarquia austro-húngara por todas as coisas sagradas de todos os credos conhecidos.

No quarto ou quinto dia de manhãzinha cedo, quando a ponte estava ainda uma vez mais a abarrotar de veículos militares que se iam escoando lentamente para o bairro do mercado, que estava também apinhado, ouviu-se por cima da cidade um assobio estridente e invulgar, e mesmo a meio da ponte, não longe da própria kapia, veio rebentar uma granada, em cima do parapeito de pedra. Estilhaços e fragmentos de pedra foram atingir homens e cavalos. Os homens precipitaram-se em confusão, os cavalos espantaram-se, e a debandada foi geral.

Uns corriam para a frente, em direção ao mercado, outros recuavam para a estrada donde tinham vindo. Logo a seguir caíram mais três granadas, duas na água e a terceira na ponte, no meio do aglomerado de homens e cavalos. Num abrir e fechar de olhos a ponte ficou deserta; no espaço vazio que se criou podiam ver-se, como manchas negras, espalhados por toda a parte, homens e cavalos mortos. Dos rochedos de Butkovo, a artilharia de campanha austríaca fez fogo para tentar calar e destruir aquela bateria sérvia de montanha que estava a martelar com o seu fogo as colunas de reabastecimento em debandada de ambos os lados da ponte.

A partir desse dia, a bateria de montanha instalada em Panos alvejou continuamente a ponte e os aquartelamentos vizinhos. Passados poucos dias, também de manhã cedo, novo assobio se fez ouvir, vindo, desta vez, de leste, dos lados de Goles. Este som vinha de mais longe, mas era mais forte, e começou a cair sobre a cidade uma chuva de bombas incendiárias com frequência ainda maior. Estas eram lançadas por dois morteiros. Os primeiros tiros caíram no Drina, mas os outros a seguir foram explodir no espaço aberto em frente da ponte, danificando o hotel de Lotte e a messe dos oficiais. Por fim, as salvas começaram a visar com regularidade a ponte e os barracões do aquartelamento. Estes últimos, uma hora depois, estavam em chamas. Os soldados tentaram ainda apagar o fogo mas, sob a ação de novo bombardeamento efetuado pela bateria de Panos, tiveram de desistir e abandonar os barracões à sua sorte. Ao calor do dia, o aquartelamento ardia como se fosse de madeira e as granadas que caíam de tempos a tempos nos escombros em chamas mais depressa destruíam ainda o interior dos edifícios. E assim, pela segunda vez, a han de pedra foi arrasada e reduzida, uma vez mais, a um montão de escombros.

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Durante os intermináveis dez dias que durou o bombardeamento não sofreu a ponte nenhum dano de monta.

Assim, em toda aquela tempestade que desabara sobre a cidade, revolvendo e arrancando pela raiz os velhos hábitos, ceifando seres vivos e coisas inanimadas, a ponte permanecera branca, sólida e invulnerável como sempre tinha sido.

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Por causa do contínuo bombardeamento, cessou quase por completo o movimento na ponte durante o dia; os civis podiam atravessá-la à vontade, e até os soldados, um a um, faziam a sua travessia a correr, mas logo que aparecia um grupo já de certa importância em cima dela os obuses disparados do monte Panos começavam a chover. Decorridos alguns dias já se tinha estabelecido uma certa regularidade. As pessoas começaram a notar quando é que o fogo era mais forte, quando se tornava mais raro e quando se interrompia de todo, e, de acordo com essas observações, iam às suas ocupações mais importantes, na medida em que as patrulhas austríacas lho permitissem.

A bateria do monte Panos fazia fogo apenas de dia, mas os morteiros de Goles atiravam também de noite e procuravam impedir os movimentos de tropas e a passagem de abastecimentos de um lado da ponte para o outro.

Os habitantes cujas casas ficavam no centro da cidade, perto da ponte e da estrada, retiraram-se com as suas famílias para Mejdan ou para outros bairros mais resguardados e afastados, procurando refúgio contra os bombardeamentos em casa de parentes ou amigos. Esta fuga, com crianças e os objetos caseiros mais necessários, fazia lembrar aquelas noites terríveis na altura em que a "grande inundação" flagelou a cidade. Simplesmente, desta vez, os homens de diversas crenças não estavam misturados nem unidos pelo sentimento da desgraça comum e da solidariedade, nem se reuniam, como nos tempos antigos, para procurar alívio e consolação na conversa. Os turcos iam para as casas turcas e os sérvios, como se fossem pestiferados, apenas se juntavam em casas sérvias. Mas mesmo separados e divididos desta maneira, viviam mais ou menos de modo semelhante.

À noite, recolhiam, para dormir, aos quartos superlotados, mas, na verdade, ninguém era capaz de pregar olho. [...] O medo era tal que ninguém se atrevia sequer a riscar um fósforo. Quando os homens queriam fumar, fechavam-se em pequenos quartos interiores, cujo ambiente era sufocante, ou cobriam a cabeça com um cobertor, e assim iam puxando as suas fumaças. O ar quente e pesado sufocava-os. Estavam todos alagados em suor, mas todas as portas e janelas se conservavam completamente fechadas e trancadas. A cidade assemelhava-se a um infeliz que cobre os olhos com as mãos e fica à espera das pancadas de que se não pode defender. Todas as casas pareciam de luto, já que quem quisesse continuar vivo tinha de se comportar como se estivesse morto. E mesmo isso nem sempre era suficiente.

Nas casas dos muçulmanos havia um pouco mais de vida. Muitos dos velhos instintos guerreiros subsistiam ainda, mas tinham sido acordados em má hora e sentiam-se embaraçados e inconsistentes perante aquele duelo travado por cima das suas cabeças, em que entrava a artilharia de duas facções diferentes, que se opunham mas que eram ambas cristãs.

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Com um olhar melancólico [Mujaga] fitava a erva na sua frente e, embebido nos seus próprios pensamentos, estava atento ao que acontecia dentro da si próprio e que era mais forte e estrondoso que todas as palavras de consolação ou que o mais vivo bombardeamento.

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Os netos e bisnetos daqueles que, daquela mesma colina, fechados em casa, ansiosos e aterrorizados, mas vibrando no mais íntimo do seu ser, tinham escutado atentamente a procurar distinguir o eco muito sumido dos canhões de Karageorge nas colinas por cima de Veletovo, ouviam agora, na escuridão quente, o troar das pesadas granadas de morteiros que lhes passavam por cima, procurando distinguir pelo som quais eram as sérvias e quais as austríacas, chamando-lhes nomes ternos ou amaldiçoando-as. Claro está que isto acontecia apenas quando os projéteis passavam alto e iam cair nos arredores da cidade, porque, quando vinham baixo, por forma a alvejar a ponte e a própria cidade, toda a gente se calava de repente, porque todos tinham a impressão, e iam mesmo jurar, que no meio do completo silêncio, e com tanto espaço à volta, ambos os contendores os estavam a alvejar só a eles e à casa em que se encontravam. Só depois de ter passado o estrondo de uma explosão próxima é que voltavam a falar.

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Cá em baixo, no centro da cidade, poucos habitantes tinham ficado. Desde o primeiro dia de guerra que tinha saído uma ordem determinando que todos os estabelecimentos deviam permanecer abertos, aparentemente para os soldados de passagem poderem fazer as compras miúdas de que necessitassem, mas, no fundo, para mostrar aos habitantes que a guerra estava longe e não fazia perigar a cidade.

[...] o hotel de Lotte encontrava-se fechado e completamente abandonado, com estragos no telhado causados por um obus e as paredes crivadas de estilhaços.

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Passou-se assim um mês inteiro em bombardeamentos preliminares da ponte, com projéteis disparados dos montes circundantes, em violências e sofrimentos de toda a espécie e na expectativa de desgraças ainda maiores. Logo nos primeiros dias, a cidade, situada entre dois fogos, foi abandonada pela maior parte dos habitantes. Mas a evacuação total só começou a fazer-se em fins de Setembro. Os últimos funcionários a abandonar Visegrad tiveram de utilizar a estrada que desemboca na ponte, porque as comunicações por caminho de ferro tinham já sido cortadas. Por último, até as tropas foram sendo retiradas a pouco e pouco da margem direita do Drina. Só ficaram uns pequenos contingentes de defesa, umas quantas tropas de engenharia e algumas patrulhas de gendarmes, à espera de receberem ordens para se retirarem também.

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Foi nesse momento que o hodja sentiu que o seu banco voava e o arrastava como se fosse um brinquedo; o seu doce silêncio transformou-se, num ápice, num bramido surdo e, logo a seguir, num estrondo enorme que encheu o ar, lhe rebentou os tímpanos e se tornou geral e insuportável. Na parede oposta as prateleiras estalaram e as coisas que continham voaram para ele, ao mesmo tempo que era projectado na direcção delas. - Ah! - gemeu o hodja. Ou, antes, apenas pensou que tinha gemido, porque nessa altura já não tinha voz nem ouvidos, como também já não tinha a certeza de se encontrar neste mundo. Num barulho ensurdecedor, tudo em volta dele se despedaçava, era arrancado pela raiz e rodopiava. Embora parecesse impossível, a sensação que teve foi a de que a pequena língua de terra situada entre os dois rios, na qual a cidade fora construída, tinha sido arrancada do chão com um estrondo horrível e projetada no espaço, onde ainda estava a voar; ou então que os dois rios tinham sido tirados dos seus leitos e levados para os céus, donde voltavam a cair no abismo com toda a sua massa de água, como duas cataratas monstruosas que ainda se não tinham quebrado nem parado. Acaso seria este o kiyamet, o tal Dia do Juízo de que falavam os livros e os homens entendidos, no qual este mundo de enganos se havia de consumir num abrir e fechar de olhos? Mas que precisão tinha Alá de um caos assim, se o Seu olhar era suficiente para, só por si, criar e extinguir mundos? Não, isto não era obra divina. Mas se o não era, como podiam as mãos dos homens ter tal força? Como podia ele, tão surpreendido, confundido e afligido com aquele choque terrível que parecia destruir, quebrar e sufocar tudo, incluindo o próprio pensamento humano, dar uma resposta a tais perguntas? Não sabia que força o arrastava, não sabia para onde voava nem onde ia parar; só sabia que ele, Alihodja, tinha sempre, e em todas as coisas, tido razão. - Ah! - gemeu o hodja uma vez mais, mas desta vez de dor, porque aquela mesma força que o tinha levantado ao ar o impelia agora de novo para baixo, brutal e cruelmente, fazendo-o cair no chão, entre a parede de madeira e o banco virado de pernas para o ar. Sentiu uma violenta pancada na cabeça e uma forte dor nos joelhos e nas costas. Só muito vagamente pôde distinguir, como um som separado e distinto do estrondo geral, que qualquer coisa pesada tinha batido no telhado da loja e que do lado de lá do tabique as madeiras e os objectos de metal começavam a estalar e a partir-se como se as coisas que estavam na loja se tivessem tornado vivas, andassem a voar e colidissem no ar.

Mas já então Alihodja tinha perdido a consciência e jazia imóvel no seu refúgio como se este já lhe servisse de esquife.

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No caos [da explosão] e na desordem das mercadorias espalhadas pela casa e dos objetos partidos via-se uma enorme pedra, pouco mais ou menos do tamanho da cabeça de um homem. O hodja olhou para cima. Era evidente que a pedra tinha vindo pelo ar, atravessando o frágil telhado de ripas de madeira. O hodja olhou de novo para a pedra, branca, porosa, lisa e polida em dois lados, mas aguçada e cruelmente partida nos outros dois. "Ah! A ponte!", pensou.


Mais:
http://vimeo.com/232188594 (http://www.imdb.com/title/tt0172776)