What a dump. Reforma na casa é um Deus nos acuda, barracuda. Adiei o
tanto que pude, mas estava precisando master de uma. A infiltração no
forro de um dos quartos do 1º andar, maçanetas e ferrolhos a serem
trocados, barulhos fantasmagóricos vindos de uma tomada, aumentar o
umbral do portão corrediço, recauchutar o piso de azulejos da área, nova
pintura geral, dar uma mexida na calha.
Meu primeiro projeto de teto próprio ocorreu-me ainda criança, após ler sobre as aventuras do rei Arthur. Desejei um castelo, obviamente. Com calabouços. Corredores iluminados por archotes ou por arandelas. Colunatas em estilo jônico. Elmos e escudos ancestrais na decoração. Candelabros de cristal. Suntuosas e intermináveis escadarias com corrimão de jacarandá, perfeitas para empurrar filantropos caçadores de doações. Balaustradas que inspirassem na gente uma vontade de cometer crimes hitchcockianos, o pôster de Vertigo girando na mente perigosa. Ponte levadiça e embaixo dela um fosso cheio de crocodilos famintos. Torre com uma Rapunzel aprisionada. Ameias nas quais eu brincaria de disparar canhões.
A realidade, porém, é chatinha e aplainada. E teima em esmagar com uma chave de grifo nossos devaneios e nosso apreço pelo que não tem imediato sentido prático ou funcional.
No temor de cair nas garras de malucos do mundo da Arquitetura & Construção, telefonei, à procura de conselhos, para o pai. Contratei um pessoal descrito por ele como de confiança. E lá veio o inferno.
Rapidamente, minha tapera foi violentada por uma horda sinistra, ripas e caibros, sacas de cimento, latas de Suvinil, um cafarnaum de tijolos furados, um arsenal de ferramentas e de pincéis, carrinho de mão, cavalete, montinho de areia e de brita, rústicos pedreiros. Besouros no jardinzinho doméstico enfartavam de constrangimento. O chefe da equipe era o Seu Corbúsio, quarentão bigodudo de feições quadradas, de fala apressada e natural de Acopiara. Muito medo que transformassem meu cantinho em uma esdruxulice premiável.
This is Sparta: concerto de marteladas, vrrrrooooom de furadeira, vai-e-vem de serrote, irrequietas lixas. Por que não convidei logo o coral da bigorna, uma sirene de ambulância e um almuadem? Poeira bastante poeira castigando o sofá, o rack, a mesinha e até o balcão de fórmica da cozinha. Pano neles. Ao pó voltarás. À hora do almoço, a peãozada de cócoras, tendo dificuldade com os talheres, conversava alto quase sem pausas e cuspindo involuntariamente uns nos outros restos de piaba frita e grãos de feijão de corda com toucinho e alecrim; os assuntos iam desde vizinhos traficantes a bisavôs que arriscaram a sorte no Ciclo da Borracha.
Quando começar a fase dos trabalhos com tinta, é sério, fujam para as colinas. Aquele cheiro forte que dá dor de cabeça, credo, parece um recinto de usuários de ópio. Dorgas, mano. Juncando a planície devastada que era o chão da sala de estar, manchados de respingos castanhos, jornais velhos em que se viam notícias do caso Alanis e de disputa por refinaria. Atelier de alvenaria? O clima estava mais para zona de guerra, uma das bem antigas e de terceiro escalão, que não deixaram sequer um mortinho ilustre para constar nos livros.
O orçamento apertou. Em noites ranzinzas, tive um pesadelo repetido. Um lobo mau, com ares de Sérgio Naya, que me perseguia e bradava: "Sou sua verba disponível! Vou soprar, soprar e sua morada vou derrubar!" Em certa manhã, acordei assustado. Pulei da cama e fui abrir uma veneziana. Arrulhos da gangue de pombos que vandalizava o telhado. Encerrada a burocracia higiênica, desci para tomar chocolate quente na caneca de estimação. Seu Corbúsio insistindo para eu liberar a mixaria, pois necessitava comprar mais material. Eu, tentando manter a impassibilidade de estátua chinesa de terracota, observava e pensava, Caramba, que escoadouro de grana é esse, doutor? Está achando que sou uma betoneira em que você joga uma mistura de reclamação e depois tira uma argamassa de moedinhas? Hein? Música de suspense, Caçulinha. Close no meu rosto, Renatão. Tensão no Teatro Fênix. Imaginei-me afobado, indo a um desses bancos patrocinadores de cinema brasileiro. Pedir empréstimo das linhas especiais de crédito para obras em imóveis, as taxas de juros sendo de 2% ao mês. Claro que me lembrei do filme com o Tom Hanks, Um Dia A Casa Cai.
Encurtando a história: sobrevivi. E estou aqui contando. Para preocupar, não há lugar como o lar.
Meu primeiro projeto de teto próprio ocorreu-me ainda criança, após ler sobre as aventuras do rei Arthur. Desejei um castelo, obviamente. Com calabouços. Corredores iluminados por archotes ou por arandelas. Colunatas em estilo jônico. Elmos e escudos ancestrais na decoração. Candelabros de cristal. Suntuosas e intermináveis escadarias com corrimão de jacarandá, perfeitas para empurrar filantropos caçadores de doações. Balaustradas que inspirassem na gente uma vontade de cometer crimes hitchcockianos, o pôster de Vertigo girando na mente perigosa. Ponte levadiça e embaixo dela um fosso cheio de crocodilos famintos. Torre com uma Rapunzel aprisionada. Ameias nas quais eu brincaria de disparar canhões.
A realidade, porém, é chatinha e aplainada. E teima em esmagar com uma chave de grifo nossos devaneios e nosso apreço pelo que não tem imediato sentido prático ou funcional.
No temor de cair nas garras de malucos do mundo da Arquitetura & Construção, telefonei, à procura de conselhos, para o pai. Contratei um pessoal descrito por ele como de confiança. E lá veio o inferno.
Rapidamente, minha tapera foi violentada por uma horda sinistra, ripas e caibros, sacas de cimento, latas de Suvinil, um cafarnaum de tijolos furados, um arsenal de ferramentas e de pincéis, carrinho de mão, cavalete, montinho de areia e de brita, rústicos pedreiros. Besouros no jardinzinho doméstico enfartavam de constrangimento. O chefe da equipe era o Seu Corbúsio, quarentão bigodudo de feições quadradas, de fala apressada e natural de Acopiara. Muito medo que transformassem meu cantinho em uma esdruxulice premiável.
This is Sparta: concerto de marteladas, vrrrrooooom de furadeira, vai-e-vem de serrote, irrequietas lixas. Por que não convidei logo o coral da bigorna, uma sirene de ambulância e um almuadem? Poeira bastante poeira castigando o sofá, o rack, a mesinha e até o balcão de fórmica da cozinha. Pano neles. Ao pó voltarás. À hora do almoço, a peãozada de cócoras, tendo dificuldade com os talheres, conversava alto quase sem pausas e cuspindo involuntariamente uns nos outros restos de piaba frita e grãos de feijão de corda com toucinho e alecrim; os assuntos iam desde vizinhos traficantes a bisavôs que arriscaram a sorte no Ciclo da Borracha.
Quando começar a fase dos trabalhos com tinta, é sério, fujam para as colinas. Aquele cheiro forte que dá dor de cabeça, credo, parece um recinto de usuários de ópio. Dorgas, mano. Juncando a planície devastada que era o chão da sala de estar, manchados de respingos castanhos, jornais velhos em que se viam notícias do caso Alanis e de disputa por refinaria. Atelier de alvenaria? O clima estava mais para zona de guerra, uma das bem antigas e de terceiro escalão, que não deixaram sequer um mortinho ilustre para constar nos livros.
O orçamento apertou. Em noites ranzinzas, tive um pesadelo repetido. Um lobo mau, com ares de Sérgio Naya, que me perseguia e bradava: "Sou sua verba disponível! Vou soprar, soprar e sua morada vou derrubar!" Em certa manhã, acordei assustado. Pulei da cama e fui abrir uma veneziana. Arrulhos da gangue de pombos que vandalizava o telhado. Encerrada a burocracia higiênica, desci para tomar chocolate quente na caneca de estimação. Seu Corbúsio insistindo para eu liberar a mixaria, pois necessitava comprar mais material. Eu, tentando manter a impassibilidade de estátua chinesa de terracota, observava e pensava, Caramba, que escoadouro de grana é esse, doutor? Está achando que sou uma betoneira em que você joga uma mistura de reclamação e depois tira uma argamassa de moedinhas? Hein? Música de suspense, Caçulinha. Close no meu rosto, Renatão. Tensão no Teatro Fênix. Imaginei-me afobado, indo a um desses bancos patrocinadores de cinema brasileiro. Pedir empréstimo das linhas especiais de crédito para obras em imóveis, as taxas de juros sendo de 2% ao mês. Claro que me lembrei do filme com o Tom Hanks, Um Dia A Casa Cai.
Encurtando a história: sobrevivi. E estou aqui contando. Para preocupar, não há lugar como o lar.