Segunda-feira e acordo com uma preguiça tão concreta que poderia ser
confundida com peça de mobília do meu modesto e semi-árido quarto. Hora
de ir para o batente. Recordar a rotina do escritório é passear pela
mente do Manoel Carlos, um sortimento de cacarecos de 2ª mão comparável a
um bazar de caridade. A máfia das cercanias da cafeteira, o grupo de
fumantes reduzindo o banheiro a uma sauna de alcatrão, a turma de RH
comentando a matéria do gênero Pai Rico, Pai Pobre exibida no Fantástico
de ontem à noite, a faxineira demorando em lugares estratégicos à
espera de colher farelos de conversas que rendam excitantes fuxicos, as
pilhas de exemplares da INFO Exame, os confrontos das
nerd-facções: FAT32 versus EXT3, eu revirando o Tom's Hardware, a
voluptuosa secretária cinturinha de pilão cujos sonhos de ascensão
geralmente causam ondas e maremotos de divórcios.
Envergo uma camisa azul-Orkut, com gola discreta e disciplinada fila de botões. Devoro o leite com sucrilhos na tigela. Não se iludam, a vida de espião da área de TI - Tecnologia da Informação - é dura. Esqueçam a cliente loira fatal de tailleur e com voz felina. Esqueçam o Dick Tracy, o reloginho-comunicador, o chapéu de feltro e o manteigáceo figurino amarelo em cima do elegante terno preto. Dou partida no spymóvel e lá vou de novo.
No assento ao lado, um volumezinho, enfeixado por espiral de plástico, em que se lê Apostila de MySQL. É o disfarce do relatório de arapongagens da semana passada. O tema de Hawaii Five-O rola solto no MP3 player.
É quando olho por acaso para o retrovisor. Uma cena, antiga como a serra da Meruoca, se repete. Percebo que estou sendo seguido. Não tem erro. O filho da mãe dirige um Alfa Romeo prata, o nome de cor que os mercenários adoram. O manjado pigarro fingido. Entre a via engarrafada e o nevoeiro com cheiro de óleo diesel, ele crê que vai conseguir, o pilantra. Amador total, sequer de óculos escuros está. Lembro-me de Smarienberg, um comercial de Smirnoff.
A tática é proceder sem embromação. Deslizo por um cruzamento e puxo a alavanca turbo. Voooooosh, coma poeira, Rubinho. Longe do stalker, pondero sobre as cidades grandes, mosaicos gaudianos de criminalidade. Os boatos imbecis de ataques simultâneos com gás H2S a lojas da Cecomil, da Nagem e da E-Byte. As remessas ilegais de nitrogênio líquido encomendadas por lunáticos que gostam de brincar de overclocking. Os ladrões de senha de rede wireless. Fora da minha alçada, há os nigerianos com cocaína no aeroporto Pinto Martins, seqüestros, invasão de delegacia, os netos de desembargador que abastecem de ecstasy caríssimas festas VIP. Submundo, escória, alma no lodo. Fatos desagradáveis como colostomia e hemodiálise. E o combate a essa guilda de contravenções não está livre de equívocos. Como no incidente em que o alvo era o corrupto sobrinho de um rajá, envolvido até o bigodão de schnauzer com um esquema de contrabando de carcaças de Compaq Presario (ridículo; quase relíquias macabras) nas redondezas da rua Perboyre e Silva. Os desastrados deletaram foi um inofensivo carioca figurante de novela da Glória Perez. O vilão continua por aí, rindo de seu escuso lucro e deitado em coxins no salão de um palácio milenar, com escravas de sari a abaná-lo com um enorme penacho, a lixar suas unhas, a enchê-lo de cafunés, a pôr-lhe ameixas na boca. Uma patifaria.
Cantando pneu, chego ao QG. Apressado para reportar logo o caso do perseguidor frustrado. Quem seria? Incomodamos gente graúda ultimamente. Distribuímos dados inclusive para a ABIN. Caminho alguns metros e sou abordado pelo estranho que eu julgava despistado, um brutamontes com físico de estivador do Pecém. Não faz sentido. O que preciso é de apólice de seguro, não de verossimilhança. Deve ser sujeito da pesada. A clássica mão por dentro do blazer. Com certeza, não uma Tommy gun safra Chicago 1928. Uma 9mm com silenciador, talvez. É o fim. Sabemos os riscos do nosso trabalho, não reclamo. Vacilou, calça um cubo de cimento e termina jogado pelos colegas thugs do Frank Sinatra nas profundezas do lago Veronica ou da lagoa de Messejana. Um corvo fantasma pousa em meu ombro esquerdo e crocita Nunca mais. A escrivaninha em desalinho, canetas que tiram fotos, carimbos, grampeador, mata-borrão, livro oco para esconder gravador, caixa de lenços descartáveis para a sinusite catarrenta provocada pelo sopro glacial do condicionador de ar, os avisos em folhas de bloco de notas grudadas com chiclete nas beiradas do monitor LCD, atendendo telefonemas e com os pés apoiados na mesa sob um balouçante cone de luz, ouvindo uma lista no Winamp com as melhores de Lalo Schifrin, os tikis polinésios em forma de arquivo de metal enferrujado com as gavetas abarrotadas, as pastas, os dossiês em papel A4, os prazos, as caças à ponta da fita durex, os limpadores de janela, a venenosa atmosfera de CC vencido no elevador lotado, o código de batidinhas nas baias para repassar fofocas, a tremelicante máquina xerox, a sinuca depois do expediente, a parede com o gigantesco mapa de Fortaleza cravado de alfinetes nas chamadas zonas críticas. Nunca mais. Reminiscências que se esgarçam numa bruma sinistra, tal qual fumaça saindo do cachimbo do Simenon. "Ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte...", ah, droga, não funciona. Homem de pouca fé. Para usar uma expressão do Raymond Chandler, acho que estou rumo ao sono eterno. Ature minha muda carranca de ódio, meliante. Atire, seu bosta.
Ele estica o caluniado braço e me entrega um envelope com uma flor-de-lis pixelizada no verso. A marca registrada d'O Chefe. Para recados extraordinários, o Nº 1 sempre age desse jeito. Nada de Skype, e-mail ou SMS. Bilhetinhos manuscritos levados por mensageiros da tropa de elite, capazes de atravessar um deserto a nado. Pura questão de frescura estilo. Lacônico, dizia, em prosa telegráfica: "Permaneça em casa. Serviço especial para você. Próximo contato às oito e quinze. Carta se destruirá 30 segundos após desdobrada."
Corneta de fail, por favor. O estafeta some. Testemunhas do ocorrido, as linhas brancas e os paralelepípedos no chão do estacionamento zombam da minha cara. Sentados em uma nuvem, Kojak, Farrah Fawcett e outros anjos da lei guardam suas lunetas bisbilhoteiras e coram de vergonha. O trânsito não se aliviou. Resignado, preparo-me para voltar e assovio o refrão daquela música. They've given you a number and taken away your name.
Envergo uma camisa azul-Orkut, com gola discreta e disciplinada fila de botões. Devoro o leite com sucrilhos na tigela. Não se iludam, a vida de espião da área de TI - Tecnologia da Informação - é dura. Esqueçam a cliente loira fatal de tailleur e com voz felina. Esqueçam o Dick Tracy, o reloginho-comunicador, o chapéu de feltro e o manteigáceo figurino amarelo em cima do elegante terno preto. Dou partida no spymóvel e lá vou de novo.
No assento ao lado, um volumezinho, enfeixado por espiral de plástico, em que se lê Apostila de MySQL. É o disfarce do relatório de arapongagens da semana passada. O tema de Hawaii Five-O rola solto no MP3 player.
É quando olho por acaso para o retrovisor. Uma cena, antiga como a serra da Meruoca, se repete. Percebo que estou sendo seguido. Não tem erro. O filho da mãe dirige um Alfa Romeo prata, o nome de cor que os mercenários adoram. O manjado pigarro fingido. Entre a via engarrafada e o nevoeiro com cheiro de óleo diesel, ele crê que vai conseguir, o pilantra. Amador total, sequer de óculos escuros está. Lembro-me de Smarienberg, um comercial de Smirnoff.
A tática é proceder sem embromação. Deslizo por um cruzamento e puxo a alavanca turbo. Voooooosh, coma poeira, Rubinho. Longe do stalker, pondero sobre as cidades grandes, mosaicos gaudianos de criminalidade. Os boatos imbecis de ataques simultâneos com gás H2S a lojas da Cecomil, da Nagem e da E-Byte. As remessas ilegais de nitrogênio líquido encomendadas por lunáticos que gostam de brincar de overclocking. Os ladrões de senha de rede wireless. Fora da minha alçada, há os nigerianos com cocaína no aeroporto Pinto Martins, seqüestros, invasão de delegacia, os netos de desembargador que abastecem de ecstasy caríssimas festas VIP. Submundo, escória, alma no lodo. Fatos desagradáveis como colostomia e hemodiálise. E o combate a essa guilda de contravenções não está livre de equívocos. Como no incidente em que o alvo era o corrupto sobrinho de um rajá, envolvido até o bigodão de schnauzer com um esquema de contrabando de carcaças de Compaq Presario (ridículo; quase relíquias macabras) nas redondezas da rua Perboyre e Silva. Os desastrados deletaram foi um inofensivo carioca figurante de novela da Glória Perez. O vilão continua por aí, rindo de seu escuso lucro e deitado em coxins no salão de um palácio milenar, com escravas de sari a abaná-lo com um enorme penacho, a lixar suas unhas, a enchê-lo de cafunés, a pôr-lhe ameixas na boca. Uma patifaria.
Cantando pneu, chego ao QG. Apressado para reportar logo o caso do perseguidor frustrado. Quem seria? Incomodamos gente graúda ultimamente. Distribuímos dados inclusive para a ABIN. Caminho alguns metros e sou abordado pelo estranho que eu julgava despistado, um brutamontes com físico de estivador do Pecém. Não faz sentido. O que preciso é de apólice de seguro, não de verossimilhança. Deve ser sujeito da pesada. A clássica mão por dentro do blazer. Com certeza, não uma Tommy gun safra Chicago 1928. Uma 9mm com silenciador, talvez. É o fim. Sabemos os riscos do nosso trabalho, não reclamo. Vacilou, calça um cubo de cimento e termina jogado pelos colegas thugs do Frank Sinatra nas profundezas do lago Veronica ou da lagoa de Messejana. Um corvo fantasma pousa em meu ombro esquerdo e crocita Nunca mais. A escrivaninha em desalinho, canetas que tiram fotos, carimbos, grampeador, mata-borrão, livro oco para esconder gravador, caixa de lenços descartáveis para a sinusite catarrenta provocada pelo sopro glacial do condicionador de ar, os avisos em folhas de bloco de notas grudadas com chiclete nas beiradas do monitor LCD, atendendo telefonemas e com os pés apoiados na mesa sob um balouçante cone de luz, ouvindo uma lista no Winamp com as melhores de Lalo Schifrin, os tikis polinésios em forma de arquivo de metal enferrujado com as gavetas abarrotadas, as pastas, os dossiês em papel A4, os prazos, as caças à ponta da fita durex, os limpadores de janela, a venenosa atmosfera de CC vencido no elevador lotado, o código de batidinhas nas baias para repassar fofocas, a tremelicante máquina xerox, a sinuca depois do expediente, a parede com o gigantesco mapa de Fortaleza cravado de alfinetes nas chamadas zonas críticas. Nunca mais. Reminiscências que se esgarçam numa bruma sinistra, tal qual fumaça saindo do cachimbo do Simenon. "Ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte...", ah, droga, não funciona. Homem de pouca fé. Para usar uma expressão do Raymond Chandler, acho que estou rumo ao sono eterno. Ature minha muda carranca de ódio, meliante. Atire, seu bosta.
Ele estica o caluniado braço e me entrega um envelope com uma flor-de-lis pixelizada no verso. A marca registrada d'O Chefe. Para recados extraordinários, o Nº 1 sempre age desse jeito. Nada de Skype, e-mail ou SMS. Bilhetinhos manuscritos levados por mensageiros da tropa de elite, capazes de atravessar um deserto a nado. Pura questão de frescura estilo. Lacônico, dizia, em prosa telegráfica: "Permaneça em casa. Serviço especial para você. Próximo contato às oito e quinze. Carta se destruirá 30 segundos após desdobrada."
Corneta de fail, por favor. O estafeta some. Testemunhas do ocorrido, as linhas brancas e os paralelepípedos no chão do estacionamento zombam da minha cara. Sentados em uma nuvem, Kojak, Farrah Fawcett e outros anjos da lei guardam suas lunetas bisbilhoteiras e coram de vergonha. O trânsito não se aliviou. Resignado, preparo-me para voltar e assovio o refrão daquela música. They've given you a number and taken away your name.