1 de setembro de 2007
Somme, uma batalha sem vencedores
Em meio à lama do Somme, as novas máquinas de guerra ajudaram a elevar o número de mortes a mais de um milhão de homens.
Na segunda década do século 20, a grande maioria dos inventos do final do século anterior já fazia parte do cotidiano de milhões de europeus, onde quer que estivessem. No campo de batalha, alguns soldados carregavam máquinas fotográficas e faziam registros pessoais de seu dia-a-dia no front; o telefone tornara-se vital para as comunicações entre a linha de frente e a retaguarda, e armas de repetição ou químicas tornavam banal a morte simultânea de dezenas de pessoas. Em cidades como Londres, a centenas de quilômetros da carnificina, homens e mulheres podiam ir comodamente ao cinema para assistir a filmes e aos jornais documentários, que traziam as últimas notícias da guerra no continente.
Foi assim que, poucas semanas depois da fracassada investida inicial dos aliados no vale do Rio Somme, os londrinos ficaram sabendo, com as cores da propaganda oficial, como se desenvolvia a guerra em solo francês, por meio do filme The Battle of the Somme (A Batalha do Somme), que utilizava imagens reais captadas no primeiro dia de combates. Mas a exibição da película por parte do governo mostrava também que franceses e ingleses não haviam desistido de seus objetivos, apesar da frustração de seus planos originais. Menos de duas semanas após o fracasso de 1º de julho de 1916, eles haviam se reorganizado e se preparavam para lançar um novo ataque contra as posições alemãs naquele local.
PRÓXIMOS DO COLAPSO
Vencer o inimigo ali significava desmantelar uma rede de 24 quilômetros de trincheiras, organizadas em três linhas sucessivas, e fortificações de concreto construídas ao redor de pequenos vilarejos e estradas com nomes diversos como Peronne, Beaucourt, Pozières e outros. Obviamente, atentos à pressão que os aliados exerciam sobre aquele setor, os alemães viram-se obrigados a desviar recursos da frente de Verdun, onde fustigavam os franceses, para manter suas posições no Somme. No período de 2 a 11 de julho, com a chegada de novas unidades, ao todo 14 divisões, as forças do general Erich von Falkenhayn, comandante-em-chefe do Exército do Kaiser, foram divididas em dois exércitos: o primeiro, sob o comando do general Fritz von Below, responsável pelo setor norte da frente, e o segundo sob o comando do general Max von Gallwitz, responsável pelo setor sul.
Os alemães acreditavam, não sem razão, que as forças aliadas estavam próximas a um ponto de exaustão e que a melhor maneira de combatê-las seria a resistência e a guerra de atrito, baseada em sucessivos contra-ataques em resposta a cada ofensiva inimiga. Por seu lado, ingleses e franceses apostavam no colapso iminente de seus oponentes e acreditavam que a melhor maneira de antecipá-lo seria a manutenção da pressão constante por meio de múltiplos ataques em diversos setores da frente.
O dia 14 de julho, data nacional francesa, foi escolhido para a estreia de uma nova tática a ser implementada inicialmente no setor sul. Os longos fogos de barragem, bombardeios prévios, que eram anúncio da iminência de um ataque, amplamente empregados até então, eliminavam o fator surpresa. Para recuperar essa condição, os aliados resolveram substituí-los por um bombardeio relâmpago de cinco minutos cujo primeiro teste seria sobre uma pequena cadeia de morros às margens da antiga estrada romana que levava de Albert a Bapaume, já na retaguarda alemã. A barragem foi seguida pelo imediato avanço da infantaria e seguida pela cavalaria, no maior ataque do gênero em toda a Batalha do Somme. O problema para os atacantes é que os alemães moviam-se com bastante habilidade entre suas posições, recuando e contra-atacando, o que tornava o avanço um processo bastante penoso.
Mas os germânicos também tinham seus problemas. No ar, a dupla de aviões Sopwith Strutter (inglês) e Nieuport 17 (francês) havia estabelecido uma momentânea superioridade técnica sobre seus similares inimigos. Isso significava que esses aviões constantemente sobrevoavam as trincheiras adversárias, metralhando e lançando bombas, causando pânico entre seus defensores, que não podiam contar com uma cobertura aérea decente. Na retaguarda, a vida não era muito mais fácil e depósitos de munições e comboios viam-se também constantemente às voltas com os ataques. Aliás, alvos não faltavam. Calcula-se que, nesse período, 1 milhão de homens e 200 mil cavalos tenham circulado atrás das linhas de combate como forças de reserva e manutenção do esforço de guerra no front.
Tal esforço, inclusive, fez com que os britânicos colocassem no campo de batalha soldados oriundos de suas ex-colônias, como canadenses, neozelandeses, australianos e sul-africanos. Avançando lentamente e sob um elevado custo em baixas, esses homens atingiriam a terceira linha de trincheiras alemãs somente em setembro. Mês que trouxe à luz mais uma máquina de guerra que mudaria a história dos conflitos: o tanque.
Idealizado para atravessar a "terra de ninguém", dando cobertura à infantaria e ignorando as barreiras criadas para deter homens e cavalos, a aparição do tanque no Somme, em 15 de setembro, causou imensa curiosidade entre aqueles que combatiam ao seu lado e enorme terror entre os desavisados alemães. É bem verdade que, das 50 unidades disponibilizadas para entrar em ação, somente 36 conseguiram realmente funcionar a contento. Mas foram suficientes para ajudar as forças britânicas a desmantelar complexos defensivos e ninhos de metralhadoras. Uma das passagens mais marcantes daquele mês de estreia da nova máquina foi a conquista da até então inexpugnável fortaleza de Combles, já na terceira linha de defesa germânica. Os atacantes, que vinham sofrendo pesadas perdas para avançar, encontraram nos subterrâneos do complexo mais de 2 mil cadáveres inimigos. Sinal de que os alemães também vinham pagando um alto preço para se manter na briga.
Esse preço custou a Falkenhayn seu posto de comandante-em-chefe do Exército alemão. Para seu lugar, o kaiser Guilherme II nomeou o general Paul von Hindenburg e seu braço direito, o general Erich Ludendorff, que tomaram como primeira medida de comando a reorganização de suas defesas com a construção da linha Siegfried-Stellung, ou Linha Hindenburg, como passaria a ser chamada pelos ingleses.
Com a chegada do mês de outubro, o tempo já normalmente úmido da região cedeu lugar a fortes chuvas, que anunciavam o inverno e transformavam o campo de batalha num imenso lamaçal. Um a um, pequenos vilarejos, como Le Sars e outras fortalezas, como Thiepval, caíram nas mão dos aliados, mas o avanço tornava-se cada vez mais lento e pouco produtivo em função da combinação da defesa obstinada com as péssimas condições do tempo.
Com a chegada do mês de novembro, do inverno e da neve, as operações no Somme foram finalmente suspensas. O sonho de quebrar a linha de defesa alemã no front ocidental chegara ao fim e os combates cessaram no dia 18.
TODOS PERDERAM
Na Linha Hindenburg os alemães permaneceriam ainda por um longo tempo, a guerra ainda tinha pela frente outros dois longos anos e os números mostravam que os ganhos dos aliados no Somme haviam sido relativamente pequenos. Ao final das hostilidades, franceses e ingleses tinham avançado apenas oito quilômetros. Somente os britânicos perderam 420 mil homens, o equivalente ao custo de dois homens por centímetro tomado aos inimigos. Isso sem contar as baixas francesas, que ficaram na casa dos 200 mil combatentes.
Os alemães, por sua vez, não se saíram muito melhor. Perderam quase meio milhão de homens para defender os mesmos oito quilômetros. O próprio Hindenburg teria dito que, se o exército alemão precisasse enfrentar outro ano como aquele, com batalhas duríssimas em Verdun e no Somme, não sobreviveria. O fato é que as fantásticas promessas de desenvolvimento tecnológico e de uma nova era, feitas no início daquele século, morriam lentamente em um dos campos de batalha mais sangrentos de toda a Primeira Grande Guerra. Ainda que as linhas alemãs tenham sido dissolvidas, o altíssimo preço em vidas cobrado de ambos os lados mostrou que na Batalha do Somme não houve um vencedor. Todos perderam.
O SENHOR DOS ANÉIS FOI À GUERRA
Encarada por muitos de seus contemporâneos como uma guerra romântica ou a guerra que daria fim a todas as demais, o conflito mundial, iniciado em 1914, arrastou muitos jovens sonhadores para o campo de batalha. Homens do povo, filhos da elite, estudantes, poetas e escritores conheceram os horrores dos combates e saíram deles profundamente modificados.
John Ronald Reuel Tolkien era um desses jovens. Juntamente com outros três colegas da Universidade de Oxford, onde havia acabado de se formar, ingressou no Exército Britânico, no início de 1916.
Tolkien e seus amigos foram enviados para o Somme, onde ele combateria do dia 1º de julho até o final de outubro. Ali, o futuro autor de O Hobbit e O Senhor dos Anéis contrairia febre de trincheira (tifo), razão pela qual seria enviado de volta para casa. Dos quatros colegas de Oxford, apenas dois sobreviveram ao Somme. E foi nas trincheiras francesas que os primeiros rudimentos do universo da Terra Média e de outros personagens fantásticos foram escritos. Tolkien viveria o bastante para se tornar professor universitário e autor de livros respeitados em seu tempo.
A VIDA NAS TRINCHEIRAS
Diz o ditado popular que "a curiosidade mata". Para muitos novatos nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial o dito foi uma trágica realidade. Mesmo orientados em seu treinamento e pelos veteranos a não espiarem a "terra de ninguém", muitos não resistiam à tentação e, poucas horas após chegarem à linha de frente, estavam mortos pela ação de snipers treinados especialmente para eliminar os desavisados.
Aqueles que conseguiam sobreviver às primeiras horas nas trincheiras poderiam conhecer melhor os horrores do cotidiano no interior das valas. É difícil imaginar qual situação causava mais incômodo aos homens que ali estavam, mas, sem dúvida, a presença das ratazanas devia ser uma fonte de tremendo desgosto. Em função da farta quantidade de restos de comida e, principalmente, de cadáveres insepultos - há estimativas de que 20% dos mortos não foram devidamente enterrados -, muitas ratazanas passeavam entre mortos e vivos à procura de alimentos, inclusive restos humanos.
O cheiro de creolina, empregada para desinfecção, misturava-se com o de comida e cigarro. Mas o odor mais temido era o do gás fosgênio, exalado sem aviso das trincheiras inimigas. Bastava o vento soprar fortemente na direção desejada para que os registros com o gás fossem abertos, tornando-o uma ameaça constante para os dois lados.
Doenças como sarna, pé de trincheira (inflamação dos pés) e a febre de trincheira (tifo), causadas pelas péssimas condições sanitárias, também eram fontes de preocupação. Como os níveis de tensão causados por todos esses problemas e também pela iminência do combate eram altos, os homens eram frequentemente retirados da linha de frente e enviados para a retaguarda. Sobreviver cada dia naquelas condições era o maior prêmio a que um soldado da Primeira Guerra podia aspirar.
Fonte:
http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/somme-batalha-vencedores-435598.shtml