domingo, 3 de julho de 2016

Lawrence da Arábia

HISTÓRIA VIVA
Julho de 2004

Lawrence da Arábia, entre o sabre e a pena

O oficial britânico conduziu as tribos árabes à vitória contra os turcos otomanos, sendo o principal artífice da independência da Arábia.

(André Guillaume)

Homem de mil talentos e de cem rostos, Lawrence sonhava com o renascimento heroico do Império Britânico sob uma forma fraternal.

A infância de Lawrence foi tão modesta quanto excepcional. Foi o segundo de cinco meninos nascidos de um casal adúltero. O pai, Thomas Chapman, era um baronete anglo-irlandês, suposto descendente de sir Walter Raleigh. A mãe, a escocesa Sarah Junner, órfã de uma união ilegítima, criada por um tio pastor calvinista, tornou-se governanta das quatro filhas de Chapman e o roubou da esposa.

O casal deixou a Irlanda para perambular pela Inglaterra e pela Bretanha, onde o garoto Thomas Edward Lawrence - nascido em Tremadoc, no País de Gales - passou três anos em Dinard. Mais dotado e mais audacioso do que os irmãos, ele descobriu "antes dos dez anos", o segredo da família: "viver em pecado", no reinado de Vitória, era uma vergonha para as pessoas honradas.

O concubinato dos pais pesaria sempre sobre a atormentada consciência puritana de Ned (o apelido de T.E. Lawrence). Ele jamais se livraria do domínio materno, apesar de fugir dela e de dissimular sua tara íntima sob disfarces e pseudônimos.

Ned recebeu uma educação mais livre do que escolar. A França de Saint-Malo, dos castelos e dos campos de batalha, assim como o País de Gales e o sul da Inglaterra, que ele visitava de bicicleta durante os verões de sua adolescência, deu a ele o gosto pelas viagens distantes, pela história e arqueologia.

Depois de suportar com dificuldade a disciplina da escola municipal de Oxford, seus talentos se manifestaram no Jesus College (1907-1909), na mesma cidade, onde foi notado pelo arqueólogo e orientalista David Hogarth, curador do Ashmolean Museum. Lawrence era um estudante extraordinário: cativado pelo ideal do cavaleiro arturiano e do fidalgo da Renascença, ele se dedicava aos estudos clássicos, ao humanismo latino e sobretudo grego, às literaturas inglesa e francesa e à filosofia alemã.

Às virtudes da mãe - abstinência de álcool, ascetismo, recusa da sensualidade e culto ao trabalho - ele acrescentava o vegetarianismo, o treinamento espartano do controle de si e do sofrimento, o apetite pelo trabalho intelectual e pela cultura física individual (ele detestava os esportes de equipe). Mergulha na história antiga e medieval, estudava a arte militar antiga, moderna e contemporânea, especializando-se na arquitetura dos castelos fortificados.

Depois de suas viagens de bicicleta pela França (verões de 1906, 1907 e 1908) e de seu périplo a pé na Síria de junho de 1909 a dezembro de 1910, ele desafiou os lugares-comuns sobre a arquitetura militar medieval na tese A influência das Cruzadas sobre a arquitetura militar europeia até o fim do século XIII, que lhe valeu uma menção de honra.

ESCAVAÇÕES

Seu romantismo da juventude se desenvolveu a partir de 1909, quando passou uma temporada na Síria, Egito e Sinai, até 1914. Graças ao afeto paternal de David Hogarth, ele participou durante quase três anos das escavações de Karkemish (norte da Síria), desenterrando vestígios hititas. Além da arqueologia, ele se dedicava à etnologia, observando os autóctones, camponeses sedentários ou beduínos nômades, que lhe ensinavam a língua árabe na versão síria.

Percorreu "este maravilhoso Oriente" novamente a pé, fez amizade com um adolescente sírio, Dahoum, um "bom selvagem", efebo de beleza helênica, e com o chefe Hamoudi. Ele se misturava com os nativos, se desentendeu com os alemães do Bagdadbahn, o canteiro de obras da ferrovia em construção, manifestando seu ódio à corrompida burocracia otomana.

O jovem pesquisador adotava a língua, as vestimentas e os costumes dos árabes do povo, ainda não ocidentalizados. Ele os ama e é amado por eles, por sua simpatia e devoção sinceras. Adaptava-se ao clima e à vida do país, mas continuava como leal súdito britânico: patriota e fiel à mais dura ética puritana.

Abandonava a religião calvinista da infância, mas não se converteu ao islã, do qual admirava o despojamento e o misticismo. Acreditando na decadência da civilização europeia, como muitos intelectuais de seu tempo, sonhava com o renascimento heroico do Império Britânico sob uma forma fraternal.

REI ARTHUR

Apaixona-se pela epopeia cavalheiresca A Morte de Artur e pela exploração do Oriente desértico relatada pelo amigo Charles Doughty em Arábia Deserta. Mas seu patriotismo o levou à espionagem a partir de janeiro de 1914, com Woolley, seu chefe nas escavações arqueológicas: protegido pela função de arqueólogo, ele integrava, no Sinai e no Neguev, na Palestina, a missão militar do capitão C.S. Newcombe, sob as ordens de lorde Kitchener, procônsul da Inglaterra no Egito e no Sudão.

Fotógrafo competente, ele se encarregou da cartografia e fez um levantamento da topografia na região oriental do canal de Suez. Voluntário na Primeira Guerra Mundial, Lawrence serviu no Oriente Médio.

No Cairo, subtenente até 1916, interrogava os prisioneiros árabes do exército turco, fazia mapas e transmitia informações, enquanto dois de seus irmãos eram mortos na França. Quando estourou a revolta árabe contra os otomanos, em junho de 1916, por iniciativa do príncipe Hussein de Meca e de seus quatro filhos, instigados por sir Henry McMahon, que vivia na capital egípcia, foi dada ao capitão Lawrence a chance de se destacar, assim como a seu amigo Winston Churchill.

O coronel Gilbert Clayton, diretor de informações, fundador do bureau árabe, e o diplomata sir Robert Storrs escolheram-no como oficial de ligação junto ao chefe da revolta árabe, o emir Faiçal, para aconselhá-lo - bem como aos xeiques das tribos beduínas e ao exército regular árabe em formação.

Lawrence desempenhou então o papel de intendente, fornecendo armas e dinheiro a estes novos aliados. Ele se tornaria o cérebro das campanhas árabes de El Ouedj em Damasco, de 1916 a 1918. Organizou uma guerrilha de bandoleiros para atacar a via férrea de Hedjaz, vital para o inimigo, destruindo pontes, atacando estações e trens de Damasco a Medina. Neutralizava assim as tropas que guardavam esta cidade.

Tais ataques maciços foram um sucesso. Assim, a expedição de El Ouedj a Akaba, sobre um camelo, dirigida pelo célebre chefe da tribo dos Haueitats, Auda Abu Tayeh e pelo príncipe Nacer de Medina, com seus voluntários irregulares, percorreu 950 km no deserto montanhoso em menos de dois meses (de 9 de maio a 6 de julho de 1917) e foi recompensada pela tomada de Akaba pelo interior. Neste único porto do Mar Vermelho que restava aos turcos, Faiçal instalou seu quartel-general e as marinhas aliadas criaram bases de apoio às ofensivas posteriores.

Depois de Akaba, o exército de Faiçal (soldados árabes do exército regular e beduínos nômades), aconselhado por Lawrence e pelo coronel Alan Dawnay, sob o comando de do general Allenby, participou da tomada da Palestina (Jerusalém, 11 de dezembro de 1917) e da Síria (Damasco, 1 de outubro de 1918). Lawrence obteve até uma vitória clássica em Tafileh, a 25 de janeiro de 1918, onde os 600 soldados do emir Zaid esmagaram uma tropa de dois mil turcos.

Representante da delegação britânica junto a Faiçal na conferência de paz em Paris, Lawrence tentou em vão defender os interesses comuns dos povos árabes e da Grã-Bretanha. Como deixavam prever os acordos anglo-franceses de Sykes-Picot, de 1916, o governo britânico traiu seus aliados árabes e cedeu a Síria e o Líbano aos franceses, ficando com a Palestina, a Transjordânia e o Iraque, sob o título de mandatos da Sociedade das Nações.

Ao permitir que a França rompesse as resistências sírias, os britânicos deveriam, por conta de imperativos financeiros, apaziguar o levante dos iraquianos e dos palestinos na conferência do Cairo (12 de março de 1921). Churchill, ministro das Colônias, confiou a resolução do conflito a Lawrence e a seu colega Hubert Young.

A candidatura de Faiçal, expulso da Síria, ao trono do Iraque, foi aceita pelos autóctones. Abdula, irmão de Faiçal, recebeu o poder na Transjordânia. A Grã-Bretanha conservava o mandato sobre a Palestina. O Iraque e a Transjordânia continuavam como aliados por mais alguns anos.

Em 1922, aos 34 anos, Lawrence já conquistara o prestígio de um grande comandante, de um especialista, tanto precursor quanto historiador, em matéria de artes militares.

No deserto do Oriente Médio, ele reinventara a guerra de movimento, na contracorrente da "guerra-assassinato" do front oeste, onde os choques massivos entre exércitos, herdados de Napoleão e de Clausewitz, exterminaram homens em vão, com ofensivas sobre linhas fortificadas infranqueáveis. Historiador da Antiguidade (leitor da Anabase, de Xenofonte), das Cruzadas e das guerras do século XVIII, ele adapta sua reflexão ao combate dos árabes contra os turcos.

Suas ideias, praticadas nos campos de batalha, estão expostas em Revolta no Deserto, Os Sete Pilares da Sabedoria e em sua correspondência. Em sua concepção, a guerrilha é uma guerra de corsários, na qual o deserto substitui o oceano.

BANDOLEIROS

Os bandoleiros montando camelos e atacando de surpresa retomam o papel desempenhado pelos piratas de outrora. Como as ilhas fora dos mapas, os oásis ou refúgios de montanha são ótimos esconderijos, uma vez cumpridas as missões. Ele soube converter em fraqueza a maior força do adversário: a estrada de ferro, eixo logístico otomano, tornando-o o mais vulnerável.

Lawrence foi um pioneiro militar, como seu compatriota e contemporâneo, o general J.F.C. Fuller e seu amigo e biógrafo, o capitão B. Liddell Hart. Os três professam que a mobilidade será a principal qualidade do exército no futuro - concepções retomadas na França pelo coronel de Gaulle e na Alemanha pelos generais Rommel e Guderian.

A mobilidade praticada por Lawrence, e depois pelo general Allenby, estava fundada numa logística complexa, no controle preciso de um conjunto heterogêneo durante as ofensivas inovadoras de 1917 e 1918: coordenação de todas as armas (infantaria, artilharia, cavalaria, blindados, aviação e marinha) e de corpos vindos dos cinco continentes, de soldados do exército regular ou não, apoiados por civis levados pela paixão nacionalista.

Ele antecipava o Commonwealth britânico de 1931 e a descolonização efetuada a partir de 1947. Sonhava associar a uma comunidade fraternal britânica todos os novos estados árabes independentes, que seriam "os primeiros membros autóctones de pele escura da união britânica, não as últimas colônias de nativos de pele escura". Mas T.E. Lawrence pensava demasiadamente além de seu tempo. Sua ingenuidade idealista fracassou também em seus vãos esforços, de 1918 a 1921, de conciliar o sionismo que admirava com o movimento árabe, que amava e apoiava.


Fonte:
http://www2.uol.com.br/historiaviva/lawrence_da_arabia_entre_o_sabre_e_a_pena.html

Mais:
http://www.youtube.com/playlist?list=PLrWPsj6fVbeXSoizxWiBUZC8iQdBcZBoS
http://iqaraislam.com/a-revolta-arabe-da-primeira-guerra-mundial