A guerra foi um dilúvio que nos arrastou. Para os outros, para os mais velhos, ela foi apenas um intervalo: conseguem pensar no tempo que virá depois. Mas nós fomos apanhados por ela, e não sabemos o fim de tudo isto. Apenas sabemos, por hora, que nos embrutecemos, de uma maneira estranha e dolorosa, mesmo que muitas vezes nem sequer fiquemos tristes.
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Kat olha o céu, solta um peido sonoro e diz, pensativo:
- Cada feijãozinho dá o seu sonzinho.
Kat e Kropp começam a discutir. Ao mesmo tempo apostam uma cerveja para ver quem acerta o vencedor de um combate de aviões que está se travando neste momento acima de nós.
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Kropp, ao contrário, é um pensador. No seu entender, uma declaração de guerra deve ser uma espécie de festa do povo, com entradas e músicas, como nas touradas. Depois, os ministros e os generais dos dois países deveriam entrar na arena de calção de banho e, armados de cacetes, investirem uns sobre os outros. O último que ficasse de pé seria o vencedor. Seria mais simples e melhor do que isto aqui, onde quem luta não são os verdadeiros interessados.
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Os gritos continuam. Não são homens, eles não gritam assim tão horrivelmente. Kat diz:
- Cavalos feridos.
Eu nunca tinha ouvido cavalos gritarem e quase não posso acreditar. É toda a lamentação do mundo, é a criatura martirizada, é uma dor selvagem, terrível, que assim geme. Ficamos pálidos. Detering levanta-se.
- Pelo amor de Deus, acabem logo com eles!
É lavrador e conhece os cavalos muito bem. Isto toca-lhe fundo. E, como se fosse de propósito, o fogo quase cessa, fazendo ficar mais nítido o gritar dos bichos.
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Os primeiros minutos com a máscara decidem sobre a vida ou a morte: toda a questão reside em saber se será impermeável. Evoco as imagens terríveis do hospital: homens atingidos pelo gás que, durante dias seguidos, vomitam, pouco a pouco, os pulmões queimados.
Respiro com cuidado, a boca apertada contra a válvula. Agora, o lençol de gás atinge o chão e insinua-se em todas as depressões. Como uma medusa enorme e flácida, espalha-se por todos os cantos ao penetrar em nossas trincheiras.
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- Aí eu agarraria uma coisa robusta assim, uma cozinheira boa, sabe, com bastante coisa para segurar, e nada mais a não ser... cama! Imaginem só, camas de verdade com edredons e colchões; meus filhos, durante oito dias garanto que não vestiria uma calça!
Todos silenciam. A imagem é por demais maravilhosa. Arrepios correm-nos pela pele.
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De qualquer maneira, vai ser difícil para nós. Será que lá em casa eles não se preocupam, às vezes, com isto? Dois anos de tiros e granadas... não é algo que se pode despir, como uma roupa.
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Kat depena e prepara o ganso. Colocamos as penas cuidadosamente de lado. Com elas, pretendemos fazer pequenos travesseiros com os dizeres: "Descansem em paz sob o bombardeio".
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A frente é uma jaula, dentro da qual a gente tem de esperar nervosamente os acontecimentos. Estamos deitados sob a rede formada pelos arcos das granadas, e vivemos na tensão da incerteza. Acima de nós, paira a fatalidade. Quando vem um tiro, posso apenas esquivar-me e mais nada; não posso adivinhar exatamente onde vai cair, nem influir em sua trajetória.
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Os ratos aqui são particularmente repugnantes, pelo seu grande tamanho. É o tipo que se chama "ratazana de cadáver". Têm caras horríveis, malévolas e peladas. Só de ver seus rabos compridos e desnudos nos dá vontade de vomitar.
No setor vizinho, os ratos atacaram, morderam e roeram dois grandes gatos e um cachorro até matá-los.
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Na verdade, a baioneta já perdeu praticamente sua importância. Durante o ataque, a moda agora é avançar só com granadas de mão e uma pá.
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Amanhece sem que nada aconteça - apenas este rolar incessante, por trás das linhas inimigas, que acaba com os nervos; são trens, trens e mais trens, caminhões e mais caminhões. Que está-se concentrando do outro lado? Nossa artilharia dispara sem cessar na sua direção, mas o movimento não acaba, não tem fim.
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O primeiro dos rapazes parece ter efetivamente enlouquecido. Corre e bate com a cabeça na parede como um bode, quando consegue soltar-se.
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Um jovem francês fica para trás e é alcançado pelos nossos. Levanta as mãos: numa delas ainda segura o revólver. Não se sabe se ele quer atirar ou render-se; um golpe de pá abre-lhe o rosto ao meio. Um outro vê a cena e tenta fugir, mas, um pouco adiante, uma baioneta é enterrada em suas costas como um raio.
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Kat dá coronhadas no rosto de um dos atiradores da metralhadora, que ainda não fora ferido, até amassá-lo. Os demais, nós matamos a baioneta, antes de poderem servir-se das granadas de mão. Depois, bebemos, sedentos, a água de refrigeração da metralhadora.
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Não precisamos, porém, nos preocupar [com os mortos]: são enterrados pelas granadas. Alguns têm as barrigas inchadas como balões, assobiam, arrotam e mexem-se. São os gases que se agitam neles.
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Gostamos dos aviões de combate, mas detestamos como a peste os de observação, porque atraem para nós o fogo da artilharia. Poucos minutos depois de surgirem, explode um dilúvio de granadas. Com isto, perdemos onze homens num só dia, inclusive cinco enfermeiros. Dois ficaram tão esmagados, que Tjaden afirmou poder raspá-los da parede da trincheira com uma colher, e enterrá-los nas marmitas.
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Procuro dominar-me e acompanho minha irmã ao açougue, para comprar uma libra de ossos. Isto é um grande luxo, e já de manhã cedo faz-se uma fila para esperá-los. Muitos chegam a desmaiar.
Não temos sorte: depois de termos esperado, revezando-nos, durante três horas, a fila se dispersa. Os ossos acabaram. Foi bom ter recebido minhas rações. Levo-as para minha mãe, e, assim, nós todos temos comida mais substancial.
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Fico frequentemente de sentinela, vigiando os [prisioneiros] russos. Na escuridão, vêem-se os seus vultos se moverem como cegonhas doentes, como enormes pássaros.
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- Mas, do outro lado, mentem mais do que nós - replico. - Lembrem-se dos panfletos que encontramos entre os prisioneiros, afirmando que comíamos as crianças belgas. Os patifes que escrevem estas coisas deveriam ser enforcados. Estes é que são os verdadeiros culpados!
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Nos parapeitos, estão alguns atiradores de elite. Têm fuzis com miras telescópicas, e examinam o setor inimigo. De vez em quando, ouvem-se tiros e, de repente, exclamações:
- Bem no alvo!
- Viu o salto que ele deu?
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Chegaram muitos reforços ingleses e americanos. Têm muito corned beef e farinha de trigo branca; muitas armas novas e muitos aviões. Mas nós, pelo contrário, estamos magros e famintos. Nossa comida é tão ruim e adulterada com tantos sucedâneos que ficamos doentes. As latrinas estão sempre cheias de gente.
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Nossa artilharia está no fim... tem pouca munição... e os canos estão tão gastos que os tiros não são certeiros e atingem nossos próprios soldados. Temos poucos cavalos, nossas tropas novas compõem-se de rapazes anêmicos, que precisam de cuidados, que não conseguem carregar mochilas, mas que sabem simplesmente morrer aos milhares. Nada conhecem de guerra, apenas avançam e deixam-se derrubar. Um único aviador divertiu-se exterminando duas companhias de recrutas como estes, quando acabavam de sair do trem, antes mesmo de terem ouvido falar em abrigo.
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Pode-se levar um tiro e morrer, pode-se ser ferido e recolhido ao Hospital Militar mais próximo. Se não nos amputam um membro, caímos mais cedo ou mais tarde nas mãos de um destes cirurgiões que, com a Cruz de Ferro na lapela, nos diz:
- O quê? Só porque esta perna é um pouco mais curta do que a outra? Nas trincheiras você não precisa correr, se for corajoso. Este homem está apto para o serviço. Retire-se!
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Os tanques, antes objeto de troça, transformaram-se em armas terríveis. Desenvolvem-se em longas filas blindadas, e, aos nossos olhos, personificam, mais do que qualquer coisa, o horror da guerra.
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Os boatos falsos e perturbadores de um armistício e de paz brotam no ar e sobressaltam os corações, tornando mais difícil do que nunca a volta para a linha de frente!
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Não somos vencidos, pois, como soldados, somos melhores e mais experientes; somos, simplesmente, esmagados e repelidos pela enorme superioridade de forças.
Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=Ciq9ts02ci4