11 de setembro de 2001. Presença De Anita animara
algumas noites de agosto. Em maio, fora lançado Crazy Taxi 2 para
Dreamcast. Acordei cedo. Iria à 10ª Região Militar, na Avenida dos
Expedicionários, tirar a carteira de reservista. Naquela manhã de
terça-feira, caía um sereno aborrecidamente irregular que orvalhava as
janelas do ônibus. No rádio, Marlon & Maicon, Destiny's Child, Os
Travessos, Jennifer Lopez, Dido.
Cheguei. Estavam lá o desajustado e tatuado mascando um chiclete imaginário, o gordo de Botero com as orelhas cheias de brincos, o provável colecionador de camisas gola pólo listradas, o rasta de dreadlocks e coberto com as cores da Jamaica, o magrelo que detestava exercício físico, ahn, esse era eu.
Longa fila. Incrível. Um relógio de parede marcava 10:35 quando alcancei o guichê. A atendente era uma senhora com rosto de cachorro pequinês. Problemas com minha documentação, explicou ela. Eu teria que retornar no dia seguinte. O motivo da complicação burocrática, fiz a mim mesmo o favor de esquecer, usando o método Dilmão Estica-Lattes Rousseff de jogo da desmemória. Resolvi dar uma passeada pelo Centro, nas lojas de discos antigos.
Voltei para casa e já era de tarde. Deitado no sofá, o saudoso tio Francisco assistia, sem entender, a um filme dos doidões Cheech & Chong. Ele exclamou, com voz de enfisema: "Menino, olha a burrice do SBT. Espia só o jeito que datilografaram 'King Kong' na tela." Na cozinha, encarei o fogão e preparei uma gororoba para almoço. Guisado de camurupim, feijão, arroz com pirão, trapos de alface e ki-suco de tangerina.
Encerrada a refeição, subi para meu quarto. Liguei a velhusca TV meio detonada, que eu ganhara ao consertá-la à custa de porrada depois de especialistas terem-na desenganado. Emissora local, debate esportivo. Tom Barros dizia: "... é a máfia dos cartolas. A ação deles é nociva como a presepada que aconteceu agora há pouco nos Estadozunido." Que presepada? Zapeei os canais. Não demorou para que inteirassem o atrasado aqui do ocorrido. Plantões de notícias faziam a farra. Repepetitidas à exaustão as clássicas cenas dos aviões chocando-se com as duas torres. E correria, chamadas telefônicas desesperadas, uma fumaceira medonha, uns mais aperreados pulando dos edifícios. Nova York e seu momento de Beirute.
Sejamos francos. Pertenço a uma geração bombardeada (epa) por petardos do gênero Máquina Mortífera e Duro De Matar. Minha inquietação maior sobre a tragédia era decidir qual seria a trilha sonora perfeita. O Monte Calvo, de Mussorgsky? The World Keeps Turning, do Napalm Death? Difícil separar das ficções que tanto consumíamos. E sempre achei que Empire State colocava WTC no bolso em matéria de representatividade. Os delinqüentes miraram outros alvos emblemáticos, inclusive: Pentágono e Capitólio. No topo da lista de desconfiança, nervosinhos filhos de Mohammed que levavam às últimas conseqüências suas leituras do Corão. E veio a atmosfera de paranóia. O povo da torta de maçã assustado, temendo que surgissem, de dentro dos armários, monstros com explosivos colados ao corpo ou brandindo cimitarras, Kalashnikovs e bandeirolas com o crescente islâmico. Boatos macarthistas de que dali em diante, em qualquer lugar do planeta, se um falasse mal de artigo inapelavelmente de quinta categoria mas made in USA - digamos, teologia da prosperidade -, proferida a blasfêmia, abrir-se-ia sob o infeliz um alçapão conduzindo o suspeito a uma sala de interrogatório na Base de Guantánamo.
Uma referência que carrego dessa época é um sentimento de "Tomaram, papudos?" e "Bem feito! Parem de ser tão arrogantes." A gente bronzeada mostrando seu valor. Os galegos comedores de hambúrguer e de marshmallow mereciam aquilo. Atire o primeiro Qassam quem não teve professor que divulgava o evangelho antiimperialista. Todos sabíamos das histórias de falcões ianques que assoviavam alegremente Star & Stripes Forever ou o tema de Bonanza enquanto espetavam criancinhas árabes ou indígenas na baioneta na frente dos pais delas apenas por diversão. E desenho do Uncle Sam devorando o globo terrestre em panfletos da UNE. Virou moda tecer comparações com o ataque nuclear ao Japão. Intervenções brutais e arbitrárias ao redor do mundo, insistiam. Semearam vento e estão colhendo tempestade, mugiu um poeta popular cearense. Acusaram o saudita Osama. Corvo que deu suas bicadas iniciais durante a luta dos mujahideens contra a URSS, o boi da cara vermelha. Eu via-o, no esconderijo subterrâneo, o pinel entediado fumando narguilé e ouvindo El Arbi, do Khaled, no walkman amarelo. Cofiava a hirsuta barba, a qual abrigava uma colônia de fungos. Preocupado em sacar do turbante uma maneira de driblar o insuportável marasmo que o assolava no montanhoso Afeganistão, entre burcas e camelos. Declarou guerra ao lado de cá do Meridiano de Greenwich. Receptividade encontraria.
Lembro também os elogios do Carlos Chacal à insólita agressão. O músico Stockhausen atribuindo ao atentado a classificação de obra de arte. A proliferação de teorias conspiratórias. Em países esdrúxulos, os flagrantes - fake, comentavam - de seres amarronzados que comemoravam nas ruas a façanha. A Astrid Fontenelle apresentando um fofocário ao vivo e caprichando na indignação à la redação de pré-vestibular. Oportunistas antologias jornalísticas do terror, de Mão Negra a ETA, de Menachem Begin a Timothy McVeigh. Ivan Kyrillos, um dos brasileiros que morreram nos escombros. A indenização bilionária de Larry Silverstein. O pixaim reclamão ex-vocalista do Rage Against The Machine arremessando no colo da realpolitik americana uma fatia da culpa pelo desastre. As posteriores cartas com antraz. O álbum The Rising, do Bruce Springsteen. A estréia do 24 Horas. Uma entrevista com o sujeito cujo sobrenome os blogueiros sérios nunca digitam certo: Hobsbawm (terminando com M de mariola e não com N de nambiquara). Uma dupla de pretos, que se descrevia como radical marxist rappers, encrencando-se com o FBI por causa de uma capa de CD. A abertura do The Sopranos cortada na parte em que os finados prédios gêmeos apareciam. O temor de ser integrado ao Exército às portas de um possível conflito generalizado em combate ao terrorismo sem fronteiras. Que nada. A reação bélica restringiu-se, em tropas mil, à pátria armada do Caçador de Pipas. E meu certificado de dispensa de incorporação foi carimbado com a data 12 SET 2001.
Cheguei. Estavam lá o desajustado e tatuado mascando um chiclete imaginário, o gordo de Botero com as orelhas cheias de brincos, o provável colecionador de camisas gola pólo listradas, o rasta de dreadlocks e coberto com as cores da Jamaica, o magrelo que detestava exercício físico, ahn, esse era eu.
Longa fila. Incrível. Um relógio de parede marcava 10:35 quando alcancei o guichê. A atendente era uma senhora com rosto de cachorro pequinês. Problemas com minha documentação, explicou ela. Eu teria que retornar no dia seguinte. O motivo da complicação burocrática, fiz a mim mesmo o favor de esquecer, usando o método Dilmão Estica-Lattes Rousseff de jogo da desmemória. Resolvi dar uma passeada pelo Centro, nas lojas de discos antigos.
Voltei para casa e já era de tarde. Deitado no sofá, o saudoso tio Francisco assistia, sem entender, a um filme dos doidões Cheech & Chong. Ele exclamou, com voz de enfisema: "Menino, olha a burrice do SBT. Espia só o jeito que datilografaram 'King Kong' na tela." Na cozinha, encarei o fogão e preparei uma gororoba para almoço. Guisado de camurupim, feijão, arroz com pirão, trapos de alface e ki-suco de tangerina.
Encerrada a refeição, subi para meu quarto. Liguei a velhusca TV meio detonada, que eu ganhara ao consertá-la à custa de porrada depois de especialistas terem-na desenganado. Emissora local, debate esportivo. Tom Barros dizia: "... é a máfia dos cartolas. A ação deles é nociva como a presepada que aconteceu agora há pouco nos Estadozunido." Que presepada? Zapeei os canais. Não demorou para que inteirassem o atrasado aqui do ocorrido. Plantões de notícias faziam a farra. Repepetitidas à exaustão as clássicas cenas dos aviões chocando-se com as duas torres. E correria, chamadas telefônicas desesperadas, uma fumaceira medonha, uns mais aperreados pulando dos edifícios. Nova York e seu momento de Beirute.
Sejamos francos. Pertenço a uma geração bombardeada (epa) por petardos do gênero Máquina Mortífera e Duro De Matar. Minha inquietação maior sobre a tragédia era decidir qual seria a trilha sonora perfeita. O Monte Calvo, de Mussorgsky? The World Keeps Turning, do Napalm Death? Difícil separar das ficções que tanto consumíamos. E sempre achei que Empire State colocava WTC no bolso em matéria de representatividade. Os delinqüentes miraram outros alvos emblemáticos, inclusive: Pentágono e Capitólio. No topo da lista de desconfiança, nervosinhos filhos de Mohammed que levavam às últimas conseqüências suas leituras do Corão. E veio a atmosfera de paranóia. O povo da torta de maçã assustado, temendo que surgissem, de dentro dos armários, monstros com explosivos colados ao corpo ou brandindo cimitarras, Kalashnikovs e bandeirolas com o crescente islâmico. Boatos macarthistas de que dali em diante, em qualquer lugar do planeta, se um falasse mal de artigo inapelavelmente de quinta categoria mas made in USA - digamos, teologia da prosperidade -, proferida a blasfêmia, abrir-se-ia sob o infeliz um alçapão conduzindo o suspeito a uma sala de interrogatório na Base de Guantánamo.
Uma referência que carrego dessa época é um sentimento de "Tomaram, papudos?" e "Bem feito! Parem de ser tão arrogantes." A gente bronzeada mostrando seu valor. Os galegos comedores de hambúrguer e de marshmallow mereciam aquilo. Atire o primeiro Qassam quem não teve professor que divulgava o evangelho antiimperialista. Todos sabíamos das histórias de falcões ianques que assoviavam alegremente Star & Stripes Forever ou o tema de Bonanza enquanto espetavam criancinhas árabes ou indígenas na baioneta na frente dos pais delas apenas por diversão. E desenho do Uncle Sam devorando o globo terrestre em panfletos da UNE. Virou moda tecer comparações com o ataque nuclear ao Japão. Intervenções brutais e arbitrárias ao redor do mundo, insistiam. Semearam vento e estão colhendo tempestade, mugiu um poeta popular cearense. Acusaram o saudita Osama. Corvo que deu suas bicadas iniciais durante a luta dos mujahideens contra a URSS, o boi da cara vermelha. Eu via-o, no esconderijo subterrâneo, o pinel entediado fumando narguilé e ouvindo El Arbi, do Khaled, no walkman amarelo. Cofiava a hirsuta barba, a qual abrigava uma colônia de fungos. Preocupado em sacar do turbante uma maneira de driblar o insuportável marasmo que o assolava no montanhoso Afeganistão, entre burcas e camelos. Declarou guerra ao lado de cá do Meridiano de Greenwich. Receptividade encontraria.
Lembro também os elogios do Carlos Chacal à insólita agressão. O músico Stockhausen atribuindo ao atentado a classificação de obra de arte. A proliferação de teorias conspiratórias. Em países esdrúxulos, os flagrantes - fake, comentavam - de seres amarronzados que comemoravam nas ruas a façanha. A Astrid Fontenelle apresentando um fofocário ao vivo e caprichando na indignação à la redação de pré-vestibular. Oportunistas antologias jornalísticas do terror, de Mão Negra a ETA, de Menachem Begin a Timothy McVeigh. Ivan Kyrillos, um dos brasileiros que morreram nos escombros. A indenização bilionária de Larry Silverstein. O pixaim reclamão ex-vocalista do Rage Against The Machine arremessando no colo da realpolitik americana uma fatia da culpa pelo desastre. As posteriores cartas com antraz. O álbum The Rising, do Bruce Springsteen. A estréia do 24 Horas. Uma entrevista com o sujeito cujo sobrenome os blogueiros sérios nunca digitam certo: Hobsbawm (terminando com M de mariola e não com N de nambiquara). Uma dupla de pretos, que se descrevia como radical marxist rappers, encrencando-se com o FBI por causa de uma capa de CD. A abertura do The Sopranos cortada na parte em que os finados prédios gêmeos apareciam. O temor de ser integrado ao Exército às portas de um possível conflito generalizado em combate ao terrorismo sem fronteiras. Que nada. A reação bélica restringiu-se, em tropas mil, à pátria armada do Caçador de Pipas. E meu certificado de dispensa de incorporação foi carimbado com a data 12 SET 2001.