domingo, 15 de outubro de 2017

A dor dos outros

Trechos de Diante Da Dor Dos Outros (2003), de Susan Sontag.


Em 1924, no décimo aniversário da mobilização nacional alemã para a Primeira Guerra Mundial, Ernst Friedrich - um dos homens que, por razões morais ou religiosas, se recusaram a pegar em armas ou servir nas forças armadas - publicou o seu Krieg dem Kriege! (Guerra contra Guerra!). Trata-se de fotografia como terapia de choque: um álbum com mais de 180 fotos, em sua maioria retiradas dos arquivos militares e médicos da Alemanha, muitas delas consideradas impublicáveis pelos censores do governo, durante a guerra. O livro começa com fotos de soldados de brinquedo, canhões de brinquedo e outras diversões de meninos do mundo inteiro, e se encerra com fotos tiradas em cemitérios militares. Entre os brinquedos e os túmulos, o leitor tem um martirizante roteiro fotográfico de quatro anos de ruína, morticínio e degradação: páginas de igrejas e castelos demolidos e saqueados, aldeias arrasadas, florestas devastadas, navios de passageiros torpedeados, veículos destroçados, homens que - por razões religiosas ou morais - se recusaram a guerrear enforcados, prostitutas seminuas em bordéis militares, soldados agonizantes depois de um ataque de gás venenoso, crianças armênias esqueléticas. Quase todas as imagens de "Guerra contra Guerra!" são difíceis de olhar, em especial as fotos de soldados mortos, pertencentes aos vários exércitos, apodrecendo aos montes em campos e estradas e nas trincheiras da linha de frente. Mas, sem dúvida, as páginas mais insuportáveis desse livro, todo ele concebido para horrorizar e desmoralizar, encontram-se na parte intitulada "A face da guerra", 24 closes de soldados com imensos ferimentos no rosto. E Friedrich não cometeu o erro de supor que fotos de virar o estômago e de partir o coração simplesmente falariam por si mesmas. Cada foto tem uma legenda pungente em quatro idiomas (alemão, francês, holandês e inglês), e a perversidade da ideologia militarista é recriminada e escarnecida a cada página. Imediatamente denunciada pelo governo, por associações de veteranos e por outras organizações patrióticas - em determinadas cidades, a polícia invadiu as livrarias, e abriram-se processos contra a exibição pública das fotos -, a declaração de guerra de Friedrich contra a guerra foi aclamada pela ala esquerda dos escritores, artistas e intelectuais, bem como pelos membros de numerosas ligas antibelicistas, que predisseram para o livro uma influência decisiva sobre a opinião pública. Em 1930, "Guerra contra Guerra!" havia tido dez edições na Alemanha e fora traduzido para muitas línguas.

Em 1938, o célebre cineasta francês Abel Gance mostrou, em close, alguns exemplos da população de ex-combatentes horrendamente desfigurados e, em geral, mantidos ocultos - les gueules cassées ("os caras quebradas"), como eram chamados em francês - no clímax do seu novo filme J'accuse. (Gance fizera uma versão anterior, primitiva, do seu incomparável filme antibelicista, com o mesmo título consagrado, em 1918-19.) A exemplo da parte final do livro de Friedrich, o filme de Gance termina em um novo cemitério militar, não só para nos lembrar quantos milhões de jovens foram sacrificados ao militarismo e à inépcia entre 1914 e 1918 na guerra acalentada como "a guerra para pôr fim a todas as guerras", mas também para sugerir a condenação sagrada que aqueles mortos seguramente fariam recair sobre os políticos e os generais da Europa, se soubessem que, vinte anos mais tarde, outra guerra seria iminente. "Morts de Verdun, levez-vous!" ("Mortos de Verdun, levantem-se!"), grita o veterano ensandecido, protagonista do filme, e repete sua conclamação em alemão e em inglês: "Seu sacrifício foi em vão!". E a vasta planície mortuária vomita sua multidão, um exército de fantasmas claudicantes, em uniformes esfarrapados, com rostos mutilados, que se erguem de seus túmulos e partem em todas as direções, causando pânico em massa entre a turba já mobilizada para a nova guerra pan-europeia. "Encham seus olhos com esse horror! É a única coisa capaz de detê-los!", grita o louco para a multidão dos vivos em debandada.

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As fotos de guerra publicadas entre 1914 e 1918, quase todas anônimas, eram, em geral - quando de fato transmitiam algo do terror e da devastação -, de estilo épico e, frequentemente, retratos das consequências: os cadáveres espalhados ou a paisagem lunar resultante de uma guerra de trincheiras; as vilas francesas arrasadas que a guerra encontrara em seu caminho. A monitoração fotográfica da guerra tal como a conhecemos teve de esperar mais alguns anos, até ocorrer o drástico aprimoramento do equipamento profissional: câmeras leves, como a Leica, com filmes de 35 milímetros que podiam bater 36 fotos antes de ser preciso recarregar a máquina fotográfica. Agora era possível tirar fotos no calor da batalha, se a censura militar permitisse, e registrar closes bem cuidados das vítimas civis e dos soldados exauridos e enfarruscados.

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O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui o nosso meio circundante, mas, quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informação, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo. A foto é como uma citação ou uma máxima ou provérbio.

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A era do choque - para a Europa - teve início em 1914. No decorrer do ano que antecedeu a Grande Guerra, como foi chamada por algum tempo, muito daquilo que se considerava seguro e garantido passou a ser visto como frágil e até indefensável. O pesadelo de um envolvimento militar suicida do qual os países em guerra foram incapazes de se desembaraçar - acima de tudo, o massacre diário nas trincheiras da frente ocidental - parecia, para muitos, haver superado a capacidade das palavras para descrevê-lo. Em 1915, ninguém menos do que o venerável mestre do intricado ofício de tecer um casulo de palavras em torno da realidade, o mago da verbosidade, Henry James, declarou a The New York Times: "Em meio a tudo isso, é tão difícil fazer uso das palavras como suportar os pensamentos. A guerra esgotou as palavras; elas se enfraqueceram, deterioraram-se [...]." E Walter Lippmann escreveu em 1922: "As fotos têm hoje o tipo de autoridade sobre a imaginação que a palavra impressa tinha no passado e que, antes dela, a palavra falada tivera. Parecem absolutamente reais."

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Não é de surpreender que muitas imagens clássicas dos primórdios da fotografia de guerra tenham sido encenadas, ou que seus temas tenham sido adulterados.

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Na era das câmeras, fazem-se exigências novas à realidade. A coisa autêntica pode não ser assustadora o bastante e, portanto, carece de uma intensificação, ou de uma reencenação mais convincente.

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Os critérios para o uso de câmeras no front com fins não militares tornaram-se muito mais restritivos, ao passo que a guerra tornou-se uma atividade levada a efeito com a ajuda de equipamentos óticos de precisão crescente, para localizar o inimigo.

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As fotos objetificam: transformam um fato ou uma pessoa em algo que se pode possuir. E as fotos são uma espécie de alquimia, a despeito de serem tão elogiadas como registros transparentes da realidade.

Muitas vezes uma coisa parece, ou dá a sensação de que parece, "melhor" numa foto.

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Assim como a pessoa pode habituar-se ao horror na vida real, pode habituar-se ao horror de certas imagens.

Contudo, existem casos em que a repetida exposição àquilo que choca, entristece, consterna não esgota a capacidade de reação compassiva.

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De fato, a própria noção de atrocidade, de crime de guerra, está associada à expectativa de alguma comprovação fotográfica.

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Atrocidades que não estejam garantidas em nossa mente por imagens fotográficas bem conhecidas, ou das quais simplesmente temos muito poucas imagens - como o extermínio total do povo hereró na Namíbia, decretado pela administração colonial alemã, em 1904 -, parecem mais remotas. Essas são lembranças que poucos se deram ao trabalho de reivindicar.

A familiaridade de certas fotos constrói nossa ideia do presente e do passado imediato. As fotos traçam rotas de referência e servem como totens de causas: um sentimento tem mais chance de se cristalizar em torno de uma foto do que de um lema verbal. E as fotos ajudam a construir - e a revisar - nossa noção de um passado mais distante, graças aos choques póstumos produzidos pela circulação daquelas até então desconhecidas. Fotos que todos reconhecem são, agora, parte constituinte dos temas sobre os quais a sociedade escolhe pensar, ou declara que escolheu pensar. Essas ideias são chamadas de "memórias" e isso, no fim das contas, é uma ficção.

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Inerente à perpetração desse mal é o desaforo de fotografá-lo. As fotos foram tiradas como suvenires e, algumas delas, transformadas em cartões-postais.

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Qual o sentido de exibir essas fotos? Para despertar indignação? Para nos sentirmos "mal", ou seja, para consternar e entristecer? Para nos ajudar a cumprir o luto? Será mesmo necessário olhar para essas fotos, uma vez que tais horrores se encontram num passado remoto o bastante para que estejam fora do alcance de qualquer punição? Tornamo-nos melhores por ver essas imagens? Será que elas de fato nos ensinam alguma coisa? Acaso não vêm apenas confirmar aquilo que já sabemos (ou queremos saber)?

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A questão é: a quem queremos culpar? Mais precisamente: a quem acreditamos ter o direito de culpar? [...] Que atrocidades do passado incurável julgamos ser nosso dever revisitar?

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Podemos nos sentir obrigados a olhar fotos que recordam graves crimes e crueldades. Deveríamos nos sentir obrigados a refletir sobre o que significa olhar tais fotos, sobre a capacidade de assimilar efetivamente aquilo que elas mostram. Nem todas as reações a tais fotos estão sob a supervisão da razão e da consciência. A maioria das imagens de corpos torturados e mutilados suscita, na verdade, um interesse voyeurístico e lascivo.

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Imagens do repugnante também podem seduzir. Todos sabem que não é a mera curiosidade que faz o trânsito de uma estrada ficar mais lento na passagem pelo local onde houve um acidente horrível. Para muitos, é também o desejo de ver algo horripilante. Chamar tal desejo de "mórbido" sugere uma aberração rara, mas a atração por essas imagens não é rara e constitui uma fonte permanente de tormento interior.

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A proximidade imaginária do sofrimento infligido aos outros que é assegurada pelas imagens sugere um vínculo entre os sofredores distantes e o espectador privilegiado, um vínculo simplesmente falso.

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Inundados por imagens do tipo que, no passado, chocava e causava indignação, estamos perdendo nossa capacidade de reagir. A compaixão, distendida até seu limite, está ficando entorpecida. Esse é o diagnóstico a que estamos familiarizados.

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A frustração de não ser capaz de fazer nada a respeito daquilo que as imagens mostram pode se traduzir numa acusação contra a indecência de olhar tais imagens, ou das indecências existentes nas maneiras como tais imagens são disseminadas - ladeadas, como pode muito bem ocorrer, por publicidade de cremes emolientes, analgésicos e automóveis caríssimos.

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A atual função primária do museu é o entretenimento e a educação, combinados de várias maneiras, e o marketing de experiências, gostos e simulacros. O Museu de Guerra Imperial de Londres, admirado por sua coleção de material bélico e pela seção de iconografia, oferece agora dois ambientes que reproduzem fielmente para o público circunstâncias da Primeira Guerra Mundial, A Experiência das Trincheiras (o rio Somme, em 1916), um percurso completo com ruídos reproduzidos em fitas (explosões de bomba, gritos), mas sem cheiros (nada de cadáveres putrefatos, nem gás venenoso).


Mais:
http://encyclopedia.1914-1918-online.net/article/photography
http://en.wikipedia.org/wiki/Virtue_signalling