Trechos de Raymond Chandler: Uma Vida (2012), de Tom Williams.
Ray sempre olhou para sua temporada na Alemanha com afeto, mas, ainda em 1906, podia sentir os prenúncios da guerra:
Eu gostei bastante dos alemães, isto é, dos alemães do sul. Mas não havia muito sentido em viver na Alemanha, já que era um segredo aberto, amplamente discutido, que nós entraríamos em guerra com eles a qualquer momento. Suponho que aquela era a mais inevitável das guerras. Não havia dúvida de que aquilo fosse acontecer. A única questão era quando. [carta a Hamish Hamilton, 11 de dezembro de 1950]
- - -
Os Lloyd continuaram a encorajar Ray dizendo que seu sonho de se tornar escritor estava ao alcance. Ele costumava rascunhar poemas e, em 14 de junho de 1914, "na estrada entre Hollywood e Burbank", Ray, Estelle e Warren Lloyd escreveram um poema juntos. Era chamado "To-morrow" [Amanhã] e, talvez como sua audiência, era apropriadamente otimista. "Amanhã", sempre fora do alcance, era o dia em que tudo sairia bem [...]
Exatamente duas semanas depois de tê-lo escrito, Gavrilo Princip assassinou a tiros o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro. Aquele evento balançou o mundo todo. [...]
Esses eventos internacionais chegaram até o ensolarado sul da Califórnia. Apesar de os Estados Unidos não terem entrado na guerra até 1917, os Otimistas, com suas conexões europeias, foram imediatamente afetados. Ray, que havia visitado e amado o sul da Alemanha, sabia que muitos dos antigos garotos do Dulwich haveriam se alistado para lutar. Patriotismo era um princípio básico na educação do Dulwich. Ex-alunos do Dulwich College que haviam morrido no campo de batalha eram venerados no colégio e motivo de grande orgulho. Ray pode muito bem ter compartilhado a vontade de lutar de seus colegas. Na casa dos Lloyd, pouco mais pode ter sido conversado além da guerra. Alma Lloyd, em particular, tinha sua lealdade dividida - sua mãe era alemã, e seu pai francês. (Na verdade, ele era da Alsácia, um território pelo qual França e Alemanha lutaram muitas vezes, e que mudou de mãos outras tantas.) Eles estavam bastante cientes da situação na Europa, que se deteriorava constantemente, até que, no final de agosto de 1914, 75 mil franceses foram assassinados. As primeiras nuvens negras surgiram sobre a atmosfera ensolarada do otimismo e exploração intelectual.
Mas a vida continuou. Em dado momento, os Chandler tomaram a decisão de se mudar da casa dos Lloyd. Alugaram uma casa em Bunker Hill, relativamente perto de Angel's Flight, no topo do pequeno trilho funicular que levava os residentes para o centro de Los Angeles.
- - -
Em fevereiro de 1917, a Alemanha mudou as regras de combate de seus submarinos U-Boot. [...] a Alemanha estava passando fome, e culpou os britânicos pela sua falta de comida. Queriam demonstrar que também podiam infligir grande dano, e começaram a afundar navios mercantes sem aviso prévio, sem emergir e sem permitir que seus passageiros desembarcassem. O efeito não foi o que o alto comando alemão esperava: a Inglaterra resistiu, e os Estados Unidos foram estimulados a aderir à guerra.
No começo de junho de 1917, o governo norte-americano começou a arregimentar todos os homens com idade entre 21 e 31 anos, num esforço para fortalecer seu Exército antes de se deslocar para a Europa e se juntar ao já então conflito global. Ray tinha 28 anos, se deparava com a possibilidade de ser enviado à luta e se preocupava tanto com sua mãe quanto consigo. Quem cuidaria dela enquanto ele estivesse longe? O que aconteceria com ela se ele fosse morto? Mais tarde, diria a amigos que tentou se alistar nas forças armadas norte-americanas, mas que não foi aceito por conta de sua visão ruim. Era mentira. Ray não se alistou porque não ousava deixar Florence. Quando o Comitê de Alistamento o chamou, ele explicou que tinha um dependente que não podia trabalhar, e foi dispensado. Também poderia ter argumentado que não podia se juntar ao Exército dos Estados Unidos, por ser cidadão britânico, mas, em seu cartão de alistamento, declarou ter solicitado a cidadania norte-americana.
Mas Ray não era covarde; sua preocupação principal era Florence. O Exército dos Estados Unidos não a sustentaria se Ray fosse à guerra, então ele começou a buscar outras opções. Ele claramente desejava lutar, e descobriu que o Exército do Canadá oferecia um abono para dependentes de soldados. Em agosto, os Chandler voltaram para Los Angeles, mudando-se para uma casa no número 127 da South Vendome Street.
O formulário de Ray revela um fato particularmente interessante: no item "Setor ou ocupação", ele se descreve como jornalista. Apesar de trabalhar com contabilidade desde sua chegada a Los Angeles, ele não se identificava como tal, não de coração. No entanto, os canadenses não estavam interessados em sua carreira. Eles o designaram para o Quinquagésimo Regimento da Canadian Expeditionary Force (CEF) e o despacharam para Victoria, cidade canadense ao noroeste do Pacífico, para treinamento inicial.
Incomum para um homem com sua educação, Ray foi designado soldado. Considerando sua frustração ao ser obrigado a tirar o boné para seus superiores no serviço público, é possível que ele tenha se ressentido com essa função modesta. Felizmente, Gordon estava próximo para dar apoio. Ambos se encaixavam bem no Exército do Canadá porque, diferentemente do Exército dos Estados Unidos, ele estava repleto de soldados de outros países. F. A. McKenzie, um correspondente de jornal junto ao CEF, descreveu o Exército canadense como sendo "tão cosmopolita como o próprio Canadá".
Uma foto tirada nessa época mostra Ray vestindo o kilt cáqui e a Tam o'Shanter, a boina dos Gordon Highlanders, ao qual o Quinquagésimo Regimento canadense estava ligado. Seu sorriso irônico sugere certa diversão com aquela vestimenta. A guerra deve ter parecido, naquele momento, como um "fantasiar-se" não muito real. Mas estava prestes a se tornar bastante real.
[...] Ele partiu para o front em 16 de março de 1918.
- - -
Ray chegou à linha de frente a apenas alguns dias da grande ofensiva alemã. Naquele momento, ele havia sido incorporado ao Sétimo Batalhão, parte da Primeira Divisão do CEF. Estavam baseados no front de Lens, protegendo as últimas minas de carvão acessíveis e vários centros de comunicação do norte da França. Ray tinha boas lembranças da França de sua juventude, mas o país ao qual ele chegou não era aquele que ele conhecia. A França havia sido marcada pela batalha, devastada e com detritos da guerra espalhados. Sua chegada coincidiu com um clima excepcionalmente favorável, e ele provavelmente se viu envolvido na construção de duzentas posições para metralhadoras em túneis, ou a colocação de 480 quilômetros de arame farpado para proteger a linha.
Quando o ataque chegou, em 21 de março, os canadenses respiraram aliviados: os alemães atacaram o Terceiro e o Quinto Exércitos ao sul das linhas da CEF. Ainda assim, estavam longe de estar a salvo, e o marechal de campo Haig ordenou-lhes a ocupar as posições reservas para assumirem onde as batalhas estivessem mais ferozes e houvesse mais em jogo. Em 23 de março, a Primeira Divisão foi colocada na reserva do Primeiro Exército e, em 27 de março, se movimenta novamente, dessa vez para a reserva do Terceiro Exército. Foi por essa série de movimentos que Ray encontrou-se atrás das linhas, ao sul de Arras, com seu batalhão posicionado nos dois lados da estrada Arras-Cambrai.
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Ray e seus colegas recrutas do Sétimo tiveram que se acostumar a lutar ao lado de tanques.
Quando chegou abril, os alemães perceberam que estavam acima do seu limite, e as esperanças de uma vitória decisiva começaram a desmoronar. A Primeira Divisão foi reenviada da posição reserva para a linha de frente em Scarpe, onde deu alívio à Quarta Divisão britânica em 8 de abril. No dia seguinte, os alemães lançaram uma segunda ofensiva maciça em Flandres, novamente sem atacar a linha canadense; mas, seu sucesso no sul e no norte piorou a posição do Exército Canadense. Essa foi a primeira experiência concreta de Ray na linha de frente e, apesar de ter tido sorte em escapar dos combates mais violentos, viu-se em meio à violência e ao perigo. À medida que a situação em Flandres se intensificava, os canadenses eram deixados em uma perigosa posição que se projetava sobre o território alemão. A única maneira de sobreviverem, de acordo com o comandante, tenente-general Sir Arthur Currie, era tomando uma atitude agressiva.
Ray e seus camaradas atacaram as trincheiras alemãs em incursões e testemunharam bombardeios de artilharia e ataques de gás. Ele viria a descrever suas experiências em um exercício de escrita descritiva, The Trench Raid [O Ataque à Trincheira], nos anos 1930. Retratou as trincheiras infestadas de ratos por vezes com defesas ad hoc - lençóis sujos bloqueando as saídas das trincheiras, que ofereciam pouca proteção ao gás alemão:
O bombardeio soou mais pesado do que o normal. A vela que ficava sobre seu chapéu de lata estremecera por algo mais do que um golpe de ar. Os ratos detrás do forro do bunker estavam imóveis. Mas um homem cansado podia continuar dormindo. O céu, que o calendário indicava que teria lua cheia, estava branco e ofuscante com inúmeras luzes de sinalizadores, branco e claro e doente como um mundo de leprosos. A ponta do paradorso, irregular com a terra de uma faxina recente, cortava essa brancura como uma linha de camelos loucos contra um nascer da lua idiótico num pesadelo.
O batalhão de Ray ficou no front por um mês, retornando para trás das linhas em maio, mas o impacto desse curto período sobre ele foi grande. O barulho interminável e a ansiedade constante de sobreviver ao dia, ou mesmo à hora, são inimagináveis para aqueles que não passaram por isso. Ele descreveu a completa exaustão por escutar bombas:
Ele começou a se concentrar nos projéteis. Sempre se concentre nos projéteis. Se você os ouvir não será atingido. Com cuidado meticuloso, ele consegue identificar aqueles que chegariam perto o bastante para serem considerados uma possível introdução à imortalidade. Esses ele escutava com um tipo de paixão fria e exausta até que o enfraquecimento dos gritos lhe dissesse que haviam ido para as linhas de apoio.
A expressão "paixão exausta" revela o puro terror da situação. A paixão por sobreviver, misturada com a exaustão da monotonia diária de tudo aquilo - as mesmas reações "lutar ou fugir" aos mesmos eventos, repetidamente.
Por fim, Ray foi promovido a sargento e colocado no comando de um pelotão para liderar seus homens na batalha e incorporar a "atitude agressiva" do tenente-general Currie. Apesar de tomar parte em frequentes incursões, ele posteriormente afirmaria que não teria sentido medo:
Como comandante de pelotão muitos anos atrás, eu nunca senti medo, e ainda assim tive medo dos riscos mais insignificantes. Se você tivesse que exagerar de alguma forma, tudo o que você parecia pensar era tentar manter os homens espalhados, para reduzir as baixas. Sempre foi muito difícil, especialmente se você tinha substitutos ou homens que haviam sido feridos. É humano querer se agrupar por companheirismo sob fogo pesado.
- - -
Precisamos levar em consideração sua tendência à automitificação. Na verdade, algumas de suas histórias de guerra são sabidamente discutíveis. Ele escreveu uma vez:
Aprendi por conta própria que na Primeira Guerra Mundial, durante a retirada final da Alemanha da linha de Hindenburg, a equipe das metralhadoras deixada para trás para segurar o avanço o máximo possível era quase sempre baionetada até o último homem, mesmo que saíssem de seus buracos e tentassem se render.
Mas Ray não era parte da investida dos Aliados no final do verão de 1918; ele havia saído para se juntar à Royal Air Force (RAF).
- - -
O que não quer dizer, entretanto, que ele não tenha testemunhado algumas coisas terríveis. O que viu o afetou tanto física quanto mentalmente. Uma foto, tirada durante seu treinamento na RAF, mostra um Ray pálido e esquelético, um fantasma ambulante. Seu marcante sorriso irônico, familiar em fotografias anteriores, perdera energia. Mais tarde, ele escreveria: "Uma vez que você liderou um pelotão para um tiroteio direto com metralhadora, nada mais é o mesmo novamente."
Em 1918, ele já bebia, apesar de não estar claro se o fazia nas trincheiras. Álcool era amplamente disponível, e muitos homens recorriam a ele para acalmar os nervos. Ray escreveu:
Quando eu era jovem na RAF, ficava tão embriagado que tinha que me arrastar para a cama com minhas mãos e joelhos, e às 7h30 da manhã seguinte eu estaria tão alegre quanto um pardal, e clamando pelo meu café da manhã. Não é a melhor das dádivas. [carta a Louise Loughner, não datada, provavelmente de maio de 1955]
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O treinamento era perigoso e, dos 14.166 pilotos que morreram na Primeira Guerra Mundial, mais da metade foi morta durante o treinamento. Ray foi longe o bastante para ser capaz de pilotar competentemente uma aeronave. [...]
Em novembro de 1918, veio o armistício e a guerra acabou. O treinamento de Ray foi interrompido e ele retornou ao Canadá, onde foi dispensado em fevereiro de 1919. Não é claro o que ele fez logo em seguida, mas parece que retornou a Los Angeles.
Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIT0RkWHlrTm9NZ2s
Ray sempre olhou para sua temporada na Alemanha com afeto, mas, ainda em 1906, podia sentir os prenúncios da guerra:
Eu gostei bastante dos alemães, isto é, dos alemães do sul. Mas não havia muito sentido em viver na Alemanha, já que era um segredo aberto, amplamente discutido, que nós entraríamos em guerra com eles a qualquer momento. Suponho que aquela era a mais inevitável das guerras. Não havia dúvida de que aquilo fosse acontecer. A única questão era quando. [carta a Hamish Hamilton, 11 de dezembro de 1950]
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Os Lloyd continuaram a encorajar Ray dizendo que seu sonho de se tornar escritor estava ao alcance. Ele costumava rascunhar poemas e, em 14 de junho de 1914, "na estrada entre Hollywood e Burbank", Ray, Estelle e Warren Lloyd escreveram um poema juntos. Era chamado "To-morrow" [Amanhã] e, talvez como sua audiência, era apropriadamente otimista. "Amanhã", sempre fora do alcance, era o dia em que tudo sairia bem [...]
Exatamente duas semanas depois de tê-lo escrito, Gavrilo Princip assassinou a tiros o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro. Aquele evento balançou o mundo todo. [...]
Esses eventos internacionais chegaram até o ensolarado sul da Califórnia. Apesar de os Estados Unidos não terem entrado na guerra até 1917, os Otimistas, com suas conexões europeias, foram imediatamente afetados. Ray, que havia visitado e amado o sul da Alemanha, sabia que muitos dos antigos garotos do Dulwich haveriam se alistado para lutar. Patriotismo era um princípio básico na educação do Dulwich. Ex-alunos do Dulwich College que haviam morrido no campo de batalha eram venerados no colégio e motivo de grande orgulho. Ray pode muito bem ter compartilhado a vontade de lutar de seus colegas. Na casa dos Lloyd, pouco mais pode ter sido conversado além da guerra. Alma Lloyd, em particular, tinha sua lealdade dividida - sua mãe era alemã, e seu pai francês. (Na verdade, ele era da Alsácia, um território pelo qual França e Alemanha lutaram muitas vezes, e que mudou de mãos outras tantas.) Eles estavam bastante cientes da situação na Europa, que se deteriorava constantemente, até que, no final de agosto de 1914, 75 mil franceses foram assassinados. As primeiras nuvens negras surgiram sobre a atmosfera ensolarada do otimismo e exploração intelectual.
Mas a vida continuou. Em dado momento, os Chandler tomaram a decisão de se mudar da casa dos Lloyd. Alugaram uma casa em Bunker Hill, relativamente perto de Angel's Flight, no topo do pequeno trilho funicular que levava os residentes para o centro de Los Angeles.
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Em fevereiro de 1917, a Alemanha mudou as regras de combate de seus submarinos U-Boot. [...] a Alemanha estava passando fome, e culpou os britânicos pela sua falta de comida. Queriam demonstrar que também podiam infligir grande dano, e começaram a afundar navios mercantes sem aviso prévio, sem emergir e sem permitir que seus passageiros desembarcassem. O efeito não foi o que o alto comando alemão esperava: a Inglaterra resistiu, e os Estados Unidos foram estimulados a aderir à guerra.
No começo de junho de 1917, o governo norte-americano começou a arregimentar todos os homens com idade entre 21 e 31 anos, num esforço para fortalecer seu Exército antes de se deslocar para a Europa e se juntar ao já então conflito global. Ray tinha 28 anos, se deparava com a possibilidade de ser enviado à luta e se preocupava tanto com sua mãe quanto consigo. Quem cuidaria dela enquanto ele estivesse longe? O que aconteceria com ela se ele fosse morto? Mais tarde, diria a amigos que tentou se alistar nas forças armadas norte-americanas, mas que não foi aceito por conta de sua visão ruim. Era mentira. Ray não se alistou porque não ousava deixar Florence. Quando o Comitê de Alistamento o chamou, ele explicou que tinha um dependente que não podia trabalhar, e foi dispensado. Também poderia ter argumentado que não podia se juntar ao Exército dos Estados Unidos, por ser cidadão britânico, mas, em seu cartão de alistamento, declarou ter solicitado a cidadania norte-americana.
Mas Ray não era covarde; sua preocupação principal era Florence. O Exército dos Estados Unidos não a sustentaria se Ray fosse à guerra, então ele começou a buscar outras opções. Ele claramente desejava lutar, e descobriu que o Exército do Canadá oferecia um abono para dependentes de soldados. Em agosto, os Chandler voltaram para Los Angeles, mudando-se para uma casa no número 127 da South Vendome Street.
O formulário de Ray revela um fato particularmente interessante: no item "Setor ou ocupação", ele se descreve como jornalista. Apesar de trabalhar com contabilidade desde sua chegada a Los Angeles, ele não se identificava como tal, não de coração. No entanto, os canadenses não estavam interessados em sua carreira. Eles o designaram para o Quinquagésimo Regimento da Canadian Expeditionary Force (CEF) e o despacharam para Victoria, cidade canadense ao noroeste do Pacífico, para treinamento inicial.
Incomum para um homem com sua educação, Ray foi designado soldado. Considerando sua frustração ao ser obrigado a tirar o boné para seus superiores no serviço público, é possível que ele tenha se ressentido com essa função modesta. Felizmente, Gordon estava próximo para dar apoio. Ambos se encaixavam bem no Exército do Canadá porque, diferentemente do Exército dos Estados Unidos, ele estava repleto de soldados de outros países. F. A. McKenzie, um correspondente de jornal junto ao CEF, descreveu o Exército canadense como sendo "tão cosmopolita como o próprio Canadá".
Uma foto tirada nessa época mostra Ray vestindo o kilt cáqui e a Tam o'Shanter, a boina dos Gordon Highlanders, ao qual o Quinquagésimo Regimento canadense estava ligado. Seu sorriso irônico sugere certa diversão com aquela vestimenta. A guerra deve ter parecido, naquele momento, como um "fantasiar-se" não muito real. Mas estava prestes a se tornar bastante real.
[...] Ele partiu para o front em 16 de março de 1918.
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Ray chegou à linha de frente a apenas alguns dias da grande ofensiva alemã. Naquele momento, ele havia sido incorporado ao Sétimo Batalhão, parte da Primeira Divisão do CEF. Estavam baseados no front de Lens, protegendo as últimas minas de carvão acessíveis e vários centros de comunicação do norte da França. Ray tinha boas lembranças da França de sua juventude, mas o país ao qual ele chegou não era aquele que ele conhecia. A França havia sido marcada pela batalha, devastada e com detritos da guerra espalhados. Sua chegada coincidiu com um clima excepcionalmente favorável, e ele provavelmente se viu envolvido na construção de duzentas posições para metralhadoras em túneis, ou a colocação de 480 quilômetros de arame farpado para proteger a linha.
Quando o ataque chegou, em 21 de março, os canadenses respiraram aliviados: os alemães atacaram o Terceiro e o Quinto Exércitos ao sul das linhas da CEF. Ainda assim, estavam longe de estar a salvo, e o marechal de campo Haig ordenou-lhes a ocupar as posições reservas para assumirem onde as batalhas estivessem mais ferozes e houvesse mais em jogo. Em 23 de março, a Primeira Divisão foi colocada na reserva do Primeiro Exército e, em 27 de março, se movimenta novamente, dessa vez para a reserva do Terceiro Exército. Foi por essa série de movimentos que Ray encontrou-se atrás das linhas, ao sul de Arras, com seu batalhão posicionado nos dois lados da estrada Arras-Cambrai.
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Ray e seus colegas recrutas do Sétimo tiveram que se acostumar a lutar ao lado de tanques.
Quando chegou abril, os alemães perceberam que estavam acima do seu limite, e as esperanças de uma vitória decisiva começaram a desmoronar. A Primeira Divisão foi reenviada da posição reserva para a linha de frente em Scarpe, onde deu alívio à Quarta Divisão britânica em 8 de abril. No dia seguinte, os alemães lançaram uma segunda ofensiva maciça em Flandres, novamente sem atacar a linha canadense; mas, seu sucesso no sul e no norte piorou a posição do Exército Canadense. Essa foi a primeira experiência concreta de Ray na linha de frente e, apesar de ter tido sorte em escapar dos combates mais violentos, viu-se em meio à violência e ao perigo. À medida que a situação em Flandres se intensificava, os canadenses eram deixados em uma perigosa posição que se projetava sobre o território alemão. A única maneira de sobreviverem, de acordo com o comandante, tenente-general Sir Arthur Currie, era tomando uma atitude agressiva.
Ray e seus camaradas atacaram as trincheiras alemãs em incursões e testemunharam bombardeios de artilharia e ataques de gás. Ele viria a descrever suas experiências em um exercício de escrita descritiva, The Trench Raid [O Ataque à Trincheira], nos anos 1930. Retratou as trincheiras infestadas de ratos por vezes com defesas ad hoc - lençóis sujos bloqueando as saídas das trincheiras, que ofereciam pouca proteção ao gás alemão:
O bombardeio soou mais pesado do que o normal. A vela que ficava sobre seu chapéu de lata estremecera por algo mais do que um golpe de ar. Os ratos detrás do forro do bunker estavam imóveis. Mas um homem cansado podia continuar dormindo. O céu, que o calendário indicava que teria lua cheia, estava branco e ofuscante com inúmeras luzes de sinalizadores, branco e claro e doente como um mundo de leprosos. A ponta do paradorso, irregular com a terra de uma faxina recente, cortava essa brancura como uma linha de camelos loucos contra um nascer da lua idiótico num pesadelo.
O batalhão de Ray ficou no front por um mês, retornando para trás das linhas em maio, mas o impacto desse curto período sobre ele foi grande. O barulho interminável e a ansiedade constante de sobreviver ao dia, ou mesmo à hora, são inimagináveis para aqueles que não passaram por isso. Ele descreveu a completa exaustão por escutar bombas:
Ele começou a se concentrar nos projéteis. Sempre se concentre nos projéteis. Se você os ouvir não será atingido. Com cuidado meticuloso, ele consegue identificar aqueles que chegariam perto o bastante para serem considerados uma possível introdução à imortalidade. Esses ele escutava com um tipo de paixão fria e exausta até que o enfraquecimento dos gritos lhe dissesse que haviam ido para as linhas de apoio.
A expressão "paixão exausta" revela o puro terror da situação. A paixão por sobreviver, misturada com a exaustão da monotonia diária de tudo aquilo - as mesmas reações "lutar ou fugir" aos mesmos eventos, repetidamente.
Por fim, Ray foi promovido a sargento e colocado no comando de um pelotão para liderar seus homens na batalha e incorporar a "atitude agressiva" do tenente-general Currie. Apesar de tomar parte em frequentes incursões, ele posteriormente afirmaria que não teria sentido medo:
Como comandante de pelotão muitos anos atrás, eu nunca senti medo, e ainda assim tive medo dos riscos mais insignificantes. Se você tivesse que exagerar de alguma forma, tudo o que você parecia pensar era tentar manter os homens espalhados, para reduzir as baixas. Sempre foi muito difícil, especialmente se você tinha substitutos ou homens que haviam sido feridos. É humano querer se agrupar por companheirismo sob fogo pesado.
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Precisamos levar em consideração sua tendência à automitificação. Na verdade, algumas de suas histórias de guerra são sabidamente discutíveis. Ele escreveu uma vez:
Aprendi por conta própria que na Primeira Guerra Mundial, durante a retirada final da Alemanha da linha de Hindenburg, a equipe das metralhadoras deixada para trás para segurar o avanço o máximo possível era quase sempre baionetada até o último homem, mesmo que saíssem de seus buracos e tentassem se render.
Mas Ray não era parte da investida dos Aliados no final do verão de 1918; ele havia saído para se juntar à Royal Air Force (RAF).
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O que não quer dizer, entretanto, que ele não tenha testemunhado algumas coisas terríveis. O que viu o afetou tanto física quanto mentalmente. Uma foto, tirada durante seu treinamento na RAF, mostra um Ray pálido e esquelético, um fantasma ambulante. Seu marcante sorriso irônico, familiar em fotografias anteriores, perdera energia. Mais tarde, ele escreveria: "Uma vez que você liderou um pelotão para um tiroteio direto com metralhadora, nada mais é o mesmo novamente."
Em 1918, ele já bebia, apesar de não estar claro se o fazia nas trincheiras. Álcool era amplamente disponível, e muitos homens recorriam a ele para acalmar os nervos. Ray escreveu:
Quando eu era jovem na RAF, ficava tão embriagado que tinha que me arrastar para a cama com minhas mãos e joelhos, e às 7h30 da manhã seguinte eu estaria tão alegre quanto um pardal, e clamando pelo meu café da manhã. Não é a melhor das dádivas. [carta a Louise Loughner, não datada, provavelmente de maio de 1955]
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O treinamento era perigoso e, dos 14.166 pilotos que morreram na Primeira Guerra Mundial, mais da metade foi morta durante o treinamento. Ray foi longe o bastante para ser capaz de pilotar competentemente uma aeronave. [...]
Em novembro de 1918, veio o armistício e a guerra acabou. O treinamento de Ray foi interrompido e ele retornou ao Canadá, onde foi dispensado em fevereiro de 1919. Não é claro o que ele fez logo em seguida, mas parece que retornou a Los Angeles.
Mais:
http://docs.google.com/file/d/0BxwrrqPyqsnIT0RkWHlrTm9NZ2s