domingo, 11 de junho de 2017

O mundo de ontem

Trechos de O Mundo De Ontem (1942), de Stefan Zweig.


O verão de 1914 permaneceria igualmente memorável sem o cataclismo que se abateu sobre o solo europeu, porque raramente vi um verão tão exuberante, belo e quase diria... de veraneio.

- - -
Na véspera daquele 29 de junho que a Áustria católica sempre celebrava como a festa de São Pedro e São Paulo, chegaram a Viena muitos clientes. Vestida com roupas de verão brancas, feliz e despreocupada, a multidão se agitava no parque diante da banda de música.

- - -
De repente, a música parou no meio de um compasso. [...] Levantei-me e vi que os músicos deixavam o coreto da orquestra. [...] quando me aproximei, vi que as pessoas vieram correndo juntas em grupos agitados diante do coreto, ao redor de um comunicado que, obviamente, tinha acabado de ser ali colocado. Como eu soube depois de alguns minutos, tratava-se de um telegrama anunciando que Sua Alteza Imperial, o herdeiro do trono e sua esposa, que haviam ido à Bósnia para assistir a manobras militares, tinham caído vítimas de um vil atentado político.

[...] devo dizer com toda a honestidade que nos rostos não se adivinhava qualquer emoção ou irritação especial, porque o herdeiro do trono nunca tinha sido um personagem querido. [...] a notícia de seu assassinato não despertou qualquer sentimento profundo. Depois de duas horas já não se via qualquer sinal de aflição autêntica. As pessoas conversavam e riam, e à noite a música foi tocada novamente em todos os locais. Naquele dia, havia na Áustria muitas pessoas que, secretamente, respiraram aliviadas porque havia sido eliminado o herdeiro do velho imperador em benefício do jovem arquiduque Karl, muito mais popular.

No dia seguinte os jornais publicaram, é claro, extensos obituários em que expressavam a devida indignação com o ataque. Mas nada indicava que fossem aproveitar o acontecimento para tomar uma ação política contra a Sérvia.

- - -
Viena, cuja curiosidade foi, assim, privada de um bom espetáculo, em seguida começou a esquecer o trágico acontecimento. Ao fim e ao cabo, após a morte violenta da imperatriz Elizabeth e do príncipe herdeiro, e depois da escandalosa fuga de vários membros da casa imperial, o povo austríaco já havia se acostumado à ideia de que o velho imperador sobreviveria, sozinho e imperturbável, à sua prole "tantálida".

Mas então, depois de cerca de uma semana, de repente começaram a aparecer nos jornais uma série de escaramuças, num crescendo muito simultâneo para ser mera coincidência. Acusavam o governo sérvio de conivência com o ataque e insinuavam que a Áustria não poderia deixar impune o assassinato de seu príncipe herdeiro [...]. Nem os bancos, nem as empresas, nem os particulares mudaram seus planos. Que nos importava aquela eterna disputa com os sérvios, que, como todos nós sabíamos, no fundo tinha surgido por causa de simples acordos comerciais relacionados à exportação de suínos sérvios? Eu havia preparado as malas para minha viagem à Bélgica, em casa de Verhaeren, e meu trabalho estava bem encaminhado; que tinha que ver o arquiduque morto e enterrado com a minha vida? Era um excelente verão e prometia sê-lo mais ainda; todos encarávamos o mundo sem preocupação. Lembro-me de que no meu último dia de estada em Baden passeava com um amigo pelas vinhas e um velho jardineiro nos disse:

- Não temos um verão como este há um longo tempo. Se continuar assim, vamos ter uma colheita sem precedentes. As pessoas irão se lembrar deste verão!

Aquele velho senhor de avental branco não sabia que tão terrível verdade encerravam suas palavras.

A mesma atmosfera despreocupada reinava em Le Coq, o pequeno balneário perto de Ostend no qual eu pretendia passar duas semanas antes de ficar, como todos os anos, na pequena villa de Verhaeren. Os veranistas ficavam deitados na praia sob guarda-sóis coloridos ou tomavam banho; as crianças empinavam pipas e os jovens dançavam no quebra-mar em frente aos cafés. Todas as nações imagináveis estavam pacificamente reunidas ali; em todos os cantos ouvia-se o idioma alemão, porque, como todos os anos, os turistas da vizinha Renânia preferiam ir às praias belgas. O único estorvo procedia dos rapazes que vendiam jornais, que para anunciá-los esganiçavam-se bradando as ameaçadoras manchetes dos diários de Paris: L'Autriche provoque la Russie, L'Allemagne prépare la mobilisation. Podia-se observar como ficavam obscuros, ainda que apenas por alguns minutos, os rostos dos que compravam os periódicos. Mas afinal conhecíamos há muitos anos aqueles conflitos diplomáticos; sempre eram resolvidos no último momento, antes que as coisas fossem de mal a pior. Por que não desta vez também?

Mas as más notícias iam se acumulando e eram cada vez mais ameaçadoras.

- - -
De repente, começamos a ver soldados belgas, que até então nunca tinham andado na praia. Apareceram carroças, carregadas de metralhadoras, puxadas por cães (curiosa peculiaridade do exército belga).

- - -
Quando passou uma tropa de soldados com uma metralhadora puxada por cães, um de nós se levantou e acariciou um dos animais, o que enfureceu o comandante do pelotão, temendo que aqueles mimos em um objeto bélico pudessem prejudicar a dignidade de uma instituição militar.

- - -
- Enforquem-me neste poste se os alemães entrarem na Bélgica!

Mas agora agradeço a meus amigos por não terem me cobrado a palavra.

- - -
De repente surgiu um vento frio de medo na praia, que a varreu até deixá-la completamente vazia. As pessoas, aos milhares, deixaram os hotéis e tomaram de assalto os trens; mesmo os mais confiantes apressaram-se a fazer as malas. Eu também, assim que ouvi a notícia da declaração de guerra por parte dos austríacos, garanti um bilhete, e a verdade é que cheguei na hora certa, porque o expresso de Ostend foi o último trem que cobriu a rota entre Bélgica e Alemanha. Viajamos em pé nos corredores, nervosos e impacientes, conversando uns com os outros. Ninguém conseguiu ler ou ficar sentado e quieto [...]. Passamos por Verviers, a estação de fronteira belga. Funcionários alemães entraram no trem: em dez minutos estaríamos em território alemão.

Mas, a meio caminho de Herbestahl, a primeira estação alemã, o trem parou de repente em campo aberto. Apertávamo-nos contra as janelas dos corredores. O que tinha acontecido? Na escuridão, vi passar um trem de carga após o outro na direção oposta: vagões abertos ou cobertos com lonas, embaixo das quais achei ter visto vagamente as ameaçadoras silhuetas de canhões.

- - -
Finalmente apareceu o sinal de "via livre", o trem retomou a marcha e entrou na estação de Herbestahl. Desci os degraus de um salto para ir buscar um jornal e pedir informações. Mas a estação estava ocupada pelo exército. Quando eu quis entrar na sala de espera, um severo oficial de barba branca postado à porta fechada me parou: proibida a entrada nas dependências da estação. Mas eu já tinha ouvido, através do vidro da porta, cuidadosamente tapado, o barulho das espadas e os golpes secos de rifles no chão. Sem dúvida, havia sido posto em movimento o que parecia monstruoso: a invasão alemã da Bélgica contra todas as leis do direito internacional. Com um calafrio de horror voltei para o trem e continuei minha viagem de volta para a Áustria. Não havia a menor dúvida: ia direto para a guerra.

Na manhã seguinte eu estava na Áustria. Em todas as estações haviam colado cartazes anunciando a mobilização geral. Os trens enchiam-se de recrutas recém-alistados, as bandeiras ondeavam, a música retumbava e em Viena encontrei toda a cidade imersa em um delírio. O primeiro espectro dessa guerra que ninguém queria, nem o povo nem o governo, a guerra com que os diplomatas tinham jogado e blefado e que depois, por descuidos, escorregara por entre os dedos contra seus propósitos, havia desembocado em um repentino entusiasmo. Formavam-se manifestações nas ruas, de imediato agitavam bandeiras e em toda parte ouviam-se bandas de música, os recrutas marchavam triunfantes, com os rostos iluminados, porque as pessoas aplaudiam. Eles, os homenzinhos cotidianos, nos quais ninguém tinha reparado antes e que nunca tinham sido tratados com gentileza.

Em honra à verdade, devo confessar que naquela primeira saída das massas à rua havia algo grandioso, arrebatador, inclusive cativante, o que era difícil de evitar. E, apesar do ódio e aversão à guerra, eu não gostaria de ser privado, durante o resto da minha vida, da memória daqueles primeiros dias; milhares, centenas de milhares de homens sentiram como nunca o que mais lhes teria valido a pena sentir em tempos de paz: que formavam um todo. [...] Os estranhos se falavam pela rua, pessoas que por anos tinham evitado umas às outras agora se davam as mãos, por todos os lados viam-se rostos animados.

- - -
[...] a circunstância de que um amigo, oficial de alta patente, trabalhasse em um arquivo, tornou possível que eu me empregasse lá. Tinha que servir na biblioteca, tarefa na qual foi útil o meu conhecimento de línguas, e também corrigir estilisticamente muitos comunicados dirigidos ao público. Certamente não era uma atividade gloriosa, admito-o de bom grado, mas era algo mais adequado à minha personalidade do que cravar uma baioneta nas tripas de um camponês russo.

- - -
[...] canções e hinos rúnicos para que entregassem suas vidas com entusiasmo. Choviam em abundância os poemas que rimavam krieg (guerra) com sieg (vitória) e not (penúria) com tod (morte). Os escritores juraram solenemente que jamais voltariam a ter relação cultural com um francês ou um inglês, e mais ainda: do dia para a noite negaram que houvesse existido algum dia uma cultura inglesa e uma cultura francesa. Tudo aquilo era inferior e fútil comparado à essência alemã, à arte alemã e ao modo de ser alemão. Os eruditos foram ainda mais severos. De repente, os filósofos não conheciam outra sabedoria além da que explicava a guerra como um benéfico "banho de águas ferruginosas" que prevenia a decadência das forças dos povos. Eram apoiados pelos médicos, os quais elogiavam tanto as próteses, que uma pessoa ficava com vontade de amputar uma perna saudável e substituí-la por uma artificial. Os sacerdotes de todas as denominações também não queriam ser deixados para trás e se uniram ao coro.

- - -
Alguns [escritores], é verdade, logo experimentaram o amargo sabor do fastio de suas próprias palavras, quando se evaporou o conhaque do primeiro entusiasmo.

- - -
Os ignorantes que espalhavam tais mentiras não sabiam que a técnica de culpar os soldados inimigos de todas as crueldades imagináveis faz parte do material bélico tanto quanto a munição e os aviões, e que são regularmente retiradas dos arsenais em todas as guerras.

- - -
Combatia-se a França e a Inglaterra em Viena e em Berlim, na Ringstrasse e na Friedrichstrasse, coisa muito mais cômoda. Os letreiros franceses e ingleses tiveram que desaparecer das lojas, porque irritavam as pessoas. Comerciantes íntegros e honestos assinalavam suas cartas com a frase "Deus castigue a Inglaterra". Senhoras da alta sociedade juravam (e escreviam em cartas para os jornais) que, enquanto vivessem, nunca mais pronunciariam uma frase em francês. Shakespeare foi banido dos palcos alemães; Mozart e Wagner, das salas de concerto francesas e inglesas, os professores alemães explicavam que Dante era germânico; os franceses, que Beethoven era belga; sem escrúpulos requisitavam os bens culturais dos países inimigos, do mesmo modo que os cereais e os minerais.

- - -
Companheiros com os quais há anos eu não discutia acusavam-me grosseiramente, dizendo que eu não era austríaco, que eu deveria ir embora para a França ou para a Bélgica. Mais ainda: insinuavam cautelosamente que deveriam informar as autoridades de opiniões como a de que aquela guerra era um crime.

- - -
Um dia, a campainha tocou. Ao abrir a porta, encontrei um soldado do tipo mais tímido. Tive um sobressalto. Rainer Maria Rilke disfarçado de militar! [...]

Por sorte, existiam mãos prontas para ajudá-lo e protegê-lo, e logo ele entrou de licença graças a um benevolente exame médico. Ele voltou a meu escritório para despedir-se, agora em trajes civis. Ele também tinha vindo me agradecer porque, através de Rolland, eu havia tentado salvar a sua biblioteca, confiscada em Paris. Pela primeira vez já não parecia mais jovem: era como se o pensamento do horror o tivesse consumido.

- - -
Eis aqui, pois, o que diferenciava a Primeira Guerra Mundial da Segunda: a palavra escrita ainda tinha autoridade. [...] Naqueles tempos, as ondas de vibração incessante do rádio ainda não inundavam os ouvidos e a alma do povo.

- - -
[1917] sabia-se que com dinheiro ou influência obtinham-se suprimentos lucrativos, enquanto seguia-se empurrando para as trincheiras camponeses e trabalhadores meio costurados a bala. Assim, pois, todos começaram a cuidar de si o melhor que podiam, sem escrúpulos. Os artigos de primeira necessidade ficavam cada dia mais caros devido a um vergonhoso comércio de atravessadores, os víveres escasseavam e, acima do pântano sombrio da miséria coletiva, brilhava como um fogo-fátuo o luxo provocador dos que se aproveitavam da guerra. Uma desconfiança irritada foi gradualmente tomando conta da população: desconfiança contra o dinheiro, que perdia valor cada vez mais, desconfiança contra os generais, oficiais e diplomatas, desconfiança contra os comunicados oficiais e do estado maior, a desconfiança contra os jornais e suas notícias, desconfiança contra a própria guerra e sua necessidade.

- - -
No dia em que o imperador Wilhelm, que havia jurado lutar até o último suspiro de homens e cavalos, fugiu pela fronteira e Ludendorff, que havia sacrificado milhões de homens à sua "paz pela vitória", escapou para a Suécia com seus óculos escuros, aquele dia foi um grande consolo para nós, porque acreditávamos - e todo o mundo também - que aquilo havia acabado "A" guerra para sempre, que se havia domado ou exterminado a fera que havia assolado o nosso mundo. Acreditávamos no grandioso programa de [Woodrow] Wilson, que subscrevíamos inteiramente. Éramos uns tolos, eu sei. Mas não apenas nós. Quem viveu aquela época lembra que as ruas de todas as cidades estrondavam de júbilo ao receber Wilson como salvador do mundo, e que os soldados inimigos se abraçavam e se beijavam; era agora ou nunca a hora da Europa comum com a qual havíamos sonhado. O Inferno havia ficado para trás, o que poderia nos assustar depois dele? Começava outro mundo. E, como éramos jovens, dizíamos: será o nosso, o mundo com que sonhamos, um mundo melhor e mais humano.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=eQTVw15RbsE
http://www.martinschlu.de/kulturgeschichte/zwanzigstes/rilke/1914krieg.htm