domingo, 7 de maio de 2017

Doutor Jivago

Trechos de Doutor Jivago (1957), de Boris Pasternak.


Há três dias fazia um tempo detestável. Esse era o segundo outono da guerra. Após o sucesso do primeiro ano, começaram os fracassos. O Oitavo Exército de Brusilov, concentrado nos Cárpatos, estava pronto para fazer a travessia e invadir a Hungria, mas em vez disso recuava, impelido pela retirada geral. As tropas libertam Galícia, ocupada desde os primeiros meses das ações militares.

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Em frente ao terraço, aproximando-se da clínica, passou um vagão motorizado com dois reboques. Deles, começaram a retirar os feridos para dentro da clínica.

Nos hospitais de Moscou, superlotados, principalmente depois da Operação Lutskaia, os feridos começaram a ser colocados nas áreas próximas das escadas e nos corredores. A superlotação geral dos hospitais da cidade começou a refletir-se nas condições das maternidades.

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Começaram a chegar suas cartas da frente de combate, mais animadas e menos tristes do que as que vinham quando estava na academia de Omsk. Antipov desejava se destacar para ser agraciado por algum mérito militar, ou por um ferimento leve solicitar uma licença para visitar a família. Surgiu a primeira possibilidade. Depois do recente rompimento da linha de frente, que posteriormente ficou conhecido como Brusilovski, o exército passou ao ataque. As cartas pararam de chegar. No início isso não preocupou Lara. Ela justificava o silêncio de Pacha com o desenvolvimento de ações militares e com a impossibilidade de escrever em plena marcha.

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Por todo o caminho, do lado do horizonte, à esquerda deles, ouviam-se trovoadas e estrondos. Gordon, em toda sua vida, jamais testemunhara um terremoto. Porém, definiu com precisão que as detonações sombrias, distantes e quase imperceptíveis da artilharia inimiga eram comparáveis aos abalos subterrâneos e rumores vulcânicos. Quando anoiteceu, a parte inferior do céu daquele lado explodiu num fogo crepitante e cor-de-rosa, que não se apagou até o amanhecer.

O cocheiro levava Gordon através de aldeias destruídas. Uma parte delas foi abandonada pelos moradores. Em outras, as pessoas abrigavam-se nos porões, bem fundo na terra. As aldeias em ruínas assemelhavam-se a um amontoado de lixo e cascalho que se estendia na mesma linha onde ficavam as casas anteriormente. Os povoados queimados podiam ser observados de uma ponta a outra, como descampados sem vegetação. Sobre as casas destruídas, velhas, vítimas dos incêndios, cada qual em sua própria montanha de cinzas, escavavam algo que a toda hora escondiam em algum lugar e se imaginavam protegidas de olhares alheios, como se ao redor delas estivessem ainda as antigas paredes.

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Naqueles dias, a frente ficou agitada. Ocorriam mudanças repentinas. Na direção do sul da localidade onde estava Gordon, uma de nossas unidades, com um ataque feliz de suas companhias, rompeu as posições reforçadas do inimigo. Desenvolvendo seu combate, o grupo de ataque tomava cada vez mais posições. Atrás do grupo seguiam divisões auxiliares que ampliavam a brecha. Atrasando pouco a pouco, elas ficaram para trás do grupo de vanguarda. Por isso, foram feitos prisioneiros. Nestas circunstâncias, foi preso o sargento Antipov, forçado a entregar sua companhia.

Sobre ele corriam boatos. Uns o consideravam morto, pois teria ficado encoberto pela terra, na cratera aberta por um projétil. Essa versão, transmitida por um seu conhecido, o alferes Galiullin, que pertencia ao mesmo regimento e que, diziam, viu a sua morte pelo binóculo do ponto de observação, quando Antipov partiu para o ataque com seus soldados.

Diante dos olhos de Galiullin, ocorreu o espetáculo costumeiro de uma companhia em ataque. Ela teria de atravessar, a passos rápidos, quase correndo, o campo outonal, coberto pela losna seca e crescida que balançava ao vento e pelo cardo imóvel, espinhoso e erguido para o alto, que separava os dois exércitos. Com atrevimento e bravura, os soldados de ataque deveriam atrair para a luta corpo-a-corpo, ou cobrir de granadas e aniquilar os austríacos, escondidos nas trincheiras opostas. O campo parecia infinito. A terra andava sob seus pés como um pântano movediço. No início, na frente e, depois no meio e junto com todos corria o sargento, balançando o revólver no alto da cabeça, gritando "hurra" com toda sua força e com a boca rasgada até quase as orelhas. Porém, nem ele e nem mesmo os soldados que corriam ao seu redor ouviam-no. A intervalos regulares, os que corriam se jogavam na terra, levantavam-se juntos e reanimados com os gritos corriam adiante. A cada vez, junto com eles, mas de maneira bem diferente, tombavam, como altas árvores derrubadas, soldados atingidos que não levantavam mais.

- Projéteis de longo alcance. Telefonem para a bateria - disse Galiullin ao oficial a seu lado. - Não. Eles agiram corretamente ao levar o fogo para mais distante.

Nesta hora, a tropa em ataque se aproximou do inimigo. O fogo cessou. No silêncio que se estabeleceu, o coração dos que estavam no posto de observação palpitou nítido e forte, parecia que eles estavam lá no lugar de Antipov, levando as pessoas até a trincheira austríaca para, no minuto seguinte, demonstrar as maravilhas da esperteza e valentia. Nesse instante, na frente deles explodiram, um após o outro, dois projéteis alemães de 400mm. Colunas negras de terra e fumaça cobriram o que aconteceu depois.

- Por Alá! Pronto! Acabou a festa! - murmurou Galiullin com os lábios empalidecidos, achando que o sargento e os soldados estavam mortos. O terceiro projétil caiu bem ao lado do posto de observação. Agachados ao máximo no chão, todos se apressaram em sair dali.

Galiullin dormia no mesmo abrigo que Antipov. Quando, no regimento, admitiram a ideia de que ele estava morto e não mais retornaria, confiaram a Galiullin, que conhecia bem Antipov, a guarda de todos os seus pertences para futuramente entregá-los à sua mulher, da qual havia inúmeras fotos entre os objetos pessoais de Antipov.

Voluntário e recém-promovido a sargento, o mecânico Galiullin, filho de Gimazetdin, que era o vigia do prédio de Timerzinski e que num passado não muito distante fora aprendiz de torneiro e apanhava de seu superior Khudoleev, devia sua promoção ao seu antigo carrasco.

Ao se tornar sargento, Galiullin, não se sabe como e sem desejar isso, foi parar em um lugar aconchegante e humilde, numa das guarnições da retaguarda em um lugarejo distante. Lá, ele comandava um grupo de semi-inválidos, com os quais os instrutores-veteranos, tão decrépitos quanto eles, passavam em revista as fileiras esquecidas. Além disso, Galiullin verificava se eles estavam colocando as sentinelas de maneira correta nos depósitos de logística. Era uma vida sem preocupações, nada mais se exigia dele. Foi quando, inesperadamente, com um reforço de velhos voluntários provenientes de Moscou, chegou, para ficar sob suas ordens, Pert Khudoleev, a quem conhecia tão bem.

- Ah, velhos conhecidos! - disse Galiullin, sorrindo carrancudo.

- Sim, senhor - respondeu Khudoleev, batendo continência em posição de sentido.

Mas isso não poderia terminar de maneira tão simples. Logo à primeira falha, o sargento berrou com seu subordinado e, quando lhe pareceu que o soldado não estava olhando para a frente e sim para o lado, em direção indefinida, estalou com um soco seus dentes e mandou-o para o xadrez, deixando-o a pão e água durante dois dias.

Agora, cada movimento de Galiullin tinha cheiro de vingança pelo passado. Mas acertar as contas desta maneira, em condições de subordinação ao cassetete, era um jogo sem perdedores e ignóbil. O que fazer? Ficarem os dois no mesmo local era impossível. Porém, com que argumento e para onde se poderia transferir o soldado da unidade a que fora designado, sem entregá-lo ao batalhão disciplinar? Por outro lado, que motivos poderia inventar Galiullin para solicitar a sua própria transferência? Alegando tédio e inutilidade do serviço na guarnição, Galiullin pediu permissão para ir para a frente de combate. Com isso podia mostrar suas qualidades e quando em outra ação militar demonstrou novos talentos, revelou-se um excelente oficial e em breve foi promovido de sargento a alferes.

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- Está uma tremenda confusão ao redor. Ninguém entende nada. No sul, contornamos pelo flanco ou rompemos as linhas dos alemães em vários locais e, em consequência, dizem que algumas de nossas unidades isoladas ficaram cercadas. No norte, os alemães atravessaram o rio Sventoji, que era considerado intransponível. Essa cavalaria parece um exército em número de efetivos. Eles destroem estradas de ferro e depósitos e, acho, estão armando um cerco contra nós. Veja só que quadro. E você falando de cavalos. Vamos logo, Karptchenko, sirva logo, mexa-se e vá embora. O que temos hoje? Ah, pés de vitela? Maravilha!

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Como sempre, o horizonte flamejava rosado do lado da frente de combate e quando no trovejar regular e incessante do bombardeio ouviam-se golpes mais graves, distintos, e que pareciam deslocar a terra ao longe para os lados, Jivago interrompia a conversa em respeito ao som, fazia uma pausa e dizia:

- É "Berta", o obus alemão de dezesseis polegadas. Pesa mais de sessenta pud o brinquedo. - Depois retomava a conversa, esquecendo-se do que estavam falando.

- Que cheiro é esse que tem a aldeia? - perguntava Gordon. - Percebi desde o primeiro dia. É tão adocicado e repugnante. Parece ser de ratos.

- Ah, sei de que você está falando. É o cânhamo. Tem muito por aqui. A própria planta de cânhamo exala um aroma enjoativo e insuportável de carniça. Além disso, nas regiões de ações militares, quando os mortos caem, ficam lá durante muito tempo sem ser descobertos e começam a se decompor. O cheiro cadavérico é muito comum aqui, é natural. De novo a "Berta". Está ouvindo?

Durante estes dias eles falaram sobre tudo. Gordon sabia o que seu colega pensava da guerra e do espírito da época. Iúri Andreevitch lhe contou com que dificuldade se acostumara à lógica sanguinária do aniquilamento mútuo, à aparência dos feridos, em particular com os horrores de alguns ferimentos de armas mais modernas, aos sobreviventes mutilados, transformados pela técnica atual de combate em pedaços de carne deformados.

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Em uma das macas carregavam um pobre infeliz, terrivelmente desfigurado. Um estilhaço lhe havia destroçado o rosto, transformando em um mingau sangrento sua língua e dentes, mas não o matou. Uma lasca de ferro estava alojada no maxilar, no lugar da bochecha dilacerada. Com um fio de voz nada humano o mutilado emitia gemidos curtos e entrecortados, que podiam ser entendidos como uma súplica para que o matassem e interrompessem seus sofrimentos prolongados e inconcebíveis. Pareceu à enfermeira que os soldados levemente feridos, que caminhavam ao seu lado, impressionados com os gemidos, queriam retirar com as próprias mãos a horrível lasca de ferro enfiada na bochecha do coitado.

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Acompanhado do grão-duque, Nikolai Nikolaievitch, o czar passou em revista os granadeiros enfileirados. Com cada sílaba de sua saudação tranquila, levantavam-se explosões e ondas de "hurras" tonitruantes, que marulhavam como água agitada nos baldes.

O czar, que sorria timidamente, dava a impressão de ser mais velho e desgastado que nas notas de rublos e moedas. Seu rosto era flácido e um pouco inchado.

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Os alemães romperam a resistência nessa região. A linha de defesa deslocou-se para mais perto da aldeia e se aproximava cada vez mais. [...]

Balas cantavam e assobiavam pelas ruas. Nos cruzamentos que atravessavam as estradas até o campo, via-se como explodiam as granadas, com seus guarda-chuvas de fogo.

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"A desordem e a anarquia no exército continuam. Estão tomando medidas para elevar a disciplina e o espírito de combate entre os soldados."

- Estão ocorrendo combates nas ruas de Petersburgo. As tropas da guarnição de Petersburgo passaram para o lado dos rebeldes. É a Revolução!


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=4Yd2PzoF1y8