domingo, 19 de fevereiro de 2017

Paz e guerra

Trechos de Paz E Guerra Entre As Nações (1962), de Raymond Aron.


O esforço da indústria de guerra na França, entre 1914 e 1918, foi espantoso, a despeito da ocupação de uma parte do território nacional pelo inimigo: até o exército norte-americano estava empregando, no fim das hostilidades, canhões e munição fabricados na França. É bem verdade que, naquela época, as armas, e mesmo os aviões, eram relativamente simples, em comparação com os conhecimentos científicos e as possibilidades da técnica.

A passagem do potencial econômico para a força militar depende também da "capacidade de ação coletiva", sob a forma de capacitação técnico-administrativa. J. Plenge (um professor alemão cujo nome caiu no esquecimento) tinha publicado em 1916 um interessante trabalho cujo tema principal era a antítese das ideias predominantes em 1789 e em 1914. As ideias de 1914 se prendiam a um conceito essencial: a organização. Para que toda a nação trabalhe para a guerra (alguns em uniforme, outros nas fábricas e escritórios, outros ainda nos campos, produzindo o necessário para manter a população e a demanda da guerra), é necessário que a administração pública seja capaz de distribuir a mão-de-obra disponível pelos vários setores produtivos, de modo a reduzir o número de trabalhadores empregados na produção de bens não-indispensáveis; é preciso que, na medida do possível, cada um execute a tarefa em que seu esforço seja mais produtivo.

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Finalmente, é preciso considerar que os beligerantes fazem a guerra não com seu potencial, mas com as forças efetivamente mobilizadas, que dependem do espaço, do tempo e do desenrolar das hostilidades. O potencial global de um país pode ser paralisado ou amputado pela falta de uma determinada matéria-prima (que representam milhares de carros de assalto se não há combustível?). Por outro lado, o domínio dos mares, combinado com a disponibilidade de divisas ou empréstimos externos, permite aumentar o potencial próprio dos países legalmente neutros. Foi o que aconteceu com os Estados Unidos da América, entre 1914 e 1917, com vantagem para os aliados.

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Possivelmente o Reich alemão inspirava a seus rivais temores ainda maiores, porque tinha objetivos poucos claros. Quando obteve as primeiras vitórias, esses objetivos pareciam vagos e grandiosos. Grupos particulares sonhavam com a "cintura da África" ou com a Mittel-Europa. O estado-maior geral, em 1917-1918, reclamava a anexação ou ocupação de uma parte da Bélgica, por motivos estratégicos. Uma potência dominante que não proclama objetivos definidos se torna suspeita de ambições ilimitadas. Os pontos explícitos de discórdia entre os Estados europeus eram a posse de territórios (Alsácia-Lorena, Trieste) e de símbolos religiosos (Constantinopla). Mas, ao mesmo tempo, a resolução desses conflitos deveria determinar a futura relação de forças, o papel da Alemanha na Europa e o da Grã-Bretanha no mundo.

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O sistema europeu de 1914 era homogêneo ou heterogêneo? Sob muitos aspectos, a homogeneidade parecia prevalecer. Os Estados reconheciam-se reciprocamente. Mesmo o menos liberal dentre eles, a Rússia, dava à oposição o direito de existir e de criticar o governo. Em nenhum Estado havia uma ideologia decretada oficialmente e reputada indispensável à sua solidez. Viajava-se livremente através das fronteiras, e a exigência de passaporte por parte das autoridades russas causava escândalo. Nenhuma classe governante tinha por objetivo a subversão do regime de um país potenciamente inimigo: a República da França não pensava assim a respeito do Império alemão ou do Império dos czares. Aliás, a República francesa era aliada do Império czarista, em conformidade com as exigências tradicionais do equilíbrio de forças.

Esta homogeneidade, evidente em tempos de paz, tinha algumas fissuras que a guerra deveria abrir. No interior dos Estados, os dois princípios de legitimidade - o direito de nascença e o critério eleitoral -, cujo conflito constituíra um dos motivos das guerras da Revolução e do Império, coexistiam numa trégua precária.

Comparados aos regimes fascistas e comunistas de hoje, o império alemão e a Rússia czarista eram relativamente liberais. Mas o poder supremo e soberano continuava a pertencer às famílias reinantes. A heterogeneidade dos regimes absolutistas (em que o soberano era designado pelo seu nascimento) e dos regimes democráticos (em que o povo o elegia) existia virtualmente. É verdade que, enquanto a Rússia czarista estivesse aliada às democracias ocidentais, nenhum dos dois campos podia explorar plenamente esta oposição. Depois da Revolução Russa, a propaganda aliada não hesitou em fazê-lo.

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Semi-homogêneo em 1914, o sistema europeu se havia tornado irremediavelmente heterogêneo em 1917, como consequência do furor da luta e da necessidade que sentiam os ocidentais de justificar sua decisão de chegar a uma vitória decisiva.

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Antes de 1914, o intercâmbio econômico gozava, em toda a Europa, de grande liberdade, garantida pelo padrão-ouro e pela conversibilidade monetária mais do que pela legislação.

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Antes de 1914, a resposta, dada pela história, não continha qualquer elemento de dúvida. O direito internacional público europeu jamais tivera por objetivo, ou adotara como princípio, a colocação da guerra fora da lei. Muito pelo contrário, previa as formas como a guerra deveria ser declarada, proibia a utilização de certos meios ofensivos, regulamentava as modalidades de armistício e de assinatura da paz, impunha aos neutros obrigações com respeito aos beligerantes e aos beligerantes certas regras com respeito aos prisioneiros, à população civil, etc. Em suma, o direito internacional legalizava e limitava a guerra, em vez de fazer dela um crime.

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A revolução da técnica militar, provocada pelo desenvolvimento do motor de combustão interna, parecia abrir caminho às grandes conquistas. Foi quando os técnicos do sistema começaram a lembrar nostalgicamente a diplomacia de Richelieu, de Mazarin, de Talleyrand.

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O aparelho militar dependia também dos instrumentos disponíveis e do seu emprego mais ou menos eficiente. As armas de choque e de lançamento determinavam a distância entre os combatentes. A influência da pólvora sobre o volume dos recursos necessários aos exércitos, e portanto sobre o tamanho das unidades políticas, é uma observação banal dos relatos históricos. O sistema de recrutamento e desenvolvimento industrial, a universalização do serviço militar e o crescimento monstruoso do coeficiente de mobilização, estão na origem do caráter hiperbólico da guerra de 1914-1918: uma guerra democrática, pois os combatentes eram "civis uniformizados"; guerra parciamente ideológica, porque os cidadãos acreditavam estar lutando "em defesa da sua alma"; guerra de material, levando ao esgotamento das nações beligerantes, uma vez que os exércitos não conseguiam vitórias de aniquilação, e o material mobilizado de cada lado era enorme.

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Tanto em 1914-1918 como em 1939-1945, o II e o III Reich foram finalmente esmagados pelo número - de soldados e, mais ainda, de canhões, de tanques e aviões.

A experiência europeia da França mostra a influência que tem o número sobre o curso da história diplomática e militar - de maneira mais sutil, porém. De fato, a França quase pereceu com a vitória de 1918, para ser salva tragicamente pela derrota de 1940. De todos os beligerantes, foi a França que fez os esforços relativamente mais consideráveis, no período de 1914 a 1918, em termos de mobilização industrial ou humana; foi ela assim que teve as perdas proporcionalmente mais elevadas (perto de 1,4 milhão de mortos, contra os 2 milhões da Alemanha). Na conferência da paz, a França apresentava-se com um brilho que lhe custou caro: era a mais debilitada de todas as nações europeias - situação que só poderia ser reparada com um aumento súbito da taxa de natalidade.

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O crescimento da população do Velho Continente fói considerável, sem que nunca a curva demográfica tenha crescido mais do que a curva dos recursos. A renda per capita dos alemães não deixou de crescer, mesmo em 1914, o que quer dizer que não houve na Alemanha uma superpopulação, no sentido rigoroso do termo. Deve-se concluir, então, que os alemães foram belicosos por simples vitalidade biológica?

Pensei já numa outra definição: poder-se-ia dizer que há uma população excedente quando um certo número de habitantes, obrigados à ociosidade em consequência de circunstâncias sociais, se tornam disponíveis para a ocupação militar; neste caso, sua eliminação eventual, pela guerra, não se traduz por uma baixa da produção. Mas, refletindo, cheguei à conclusão de que o fenômeno definido dessa forma (que passarei a chamar de excesso de homens) é por demais frequente para permitir um estudo de conjunto das relações entre a população e a belicosidade.

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Sabemos, com efeito, que em 1913 nem a Alemanha nem a Europa sofriam de superpopulação. A ideologia do "povo sem espaço" ainda não tinha curso (Volk ohne Raum). Os dirigentes e a opinião pública do Reich sabiam que as riquezas estavam aumentando mais depressa do que a população. Se a causa do imperialismo alemão, e das guerras em que mergulhou a civilização europeia, fosse o crescimento demográfico, caberia procurar os fatos essenciais não nos números brutos, ou na comparação de curvas, mas no inconsciente obscuro das coletividades.

A Alemanha e a Europa não tinham necessidade de perder dezenas de milhões de homens para assegurar aos sobreviventes da catástrofe um nível de vida mais elevado. Nenhum país do continente tinha ultrapassado o optimum de bem-estar; nenhum país podia acreditar que estivesse sendo esmagado pelo peso do número. Na Alemanha, como em todo país de natalidade elevada, os jovens eram proporcionalmente mais numerosos do que nos países onde a natalidade apenas permite a renovação das gerações. Esse reservatório de combatentes pode ter inspirado as ambições dos dirigentes, mas não devia inspirar-lhes angústia pela sua situação, ou a do seu regime. Se as guerras europeias do século XX tiveram uma função demográfica (conforme Bouthoul), isto só pode ser explicado pelo fato de que a "pressão demográfica" que leva à guerra não é criada pela densidade da população ou pelo empobrecimento coletivo, mas por uma espécie de exuberância vital, comparável à que encontramos nas disputas e nos jogos dos adolescentes, em cujas veias o sangue circula com muito vigor. Não conhecemos bastante bem as leis que orientam o desenvolvimento das coletividades para que possamos excluir radicalmente a hipótese de um vínculo entre a fecundidade e o temperamento belicoso. Em todo caso, é possível afirmar com segurança que não é sempre que se encontra esse vínculo, e que, nos casos onde se pensa percebê-lo, outras explicações podem ser mais convincentes.

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Durante os cinquenta anos que precederam a guerra de 1914-1918, os dois países que conquistaram a maior extensão colonial, a França e a Grã-Bretanha, foram também os que menos precisavam adquirir novas possessões, do ponto de vista econômico. A França tinha uma população estacionária e um crescimento industrial lento; não a motivava, portanto, nem o excesso de população, nem a falta de matérias-primas, nem a necessidade de mercado para seus produtos manufaturados. A população e a produção cresciam mais depressa na Grã-Bretanha, mas a porta da emigração continuava aberta; com seus domínios e a Índia, o Reino Unido não estava sedento por espaço. É verdade que tanto a França como a Grã-Bretanha tinham um excesso de capital, tendo-se tornado os banqueiros do mundo, mas suas colônias só receberam uma pequena fração desse excesso.

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Teriam os ingleses decidido abater a Alemanha para eliminar um concorrente comercial? Esta lenda não resiste a um exame cuidadoso. É verdade que certos setores da exportação inglesa tinham sido atingidos pela concorrência alemã. Os dois países aumentavam suas exportações, mas as exportações da Alemanha aumentavam mais depressa. Dir-se-á, então, que os ingleses se sentiam ameaçados, embora sem razão? A opinião pública inglesa estava tão consciente do caráter complementar das duas economias quanto da oposição entre elas: a Inglaterra era o melhor cliente e o melhor fornecedor da Alemanha, e vice-versa. A voz dos liberais que denunciavam a futilidade das conquistas ecoava mais do que a dos retardatários do mercantilismo, que apelavam para as armas a fim de salvar o comércio.

[...] Os estadistas descobriram tarde demais que a indústria transformara a natureza das guerras mais ainda do que as circunstâncias em que surgiam as disputas.

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Segundo a cronologia de Toynbee, o ano de 1914 corresponderia a 431 antes de Cristo - isto é, ao início da Guerra do Peloponeso, momento da "ruptura" do mundo helênico.

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Muitos filósofos e cientistas sociais desejariam apreender a lei a que obedecem tais variações. É tentador imaginar ciclos - afloramentos, na superfície da história, de fenômenos biológicos. Mas nenhuma das demonstrações já tentadas parece convincente. É certo que depois de uma grande guerra, ou de um período prolongado de guerras (1791-1815), tudo se passa como se os povos retomassem fôlego, como se as nações (tal como os seres vivos) quisessem refazer suas forças. Ficamos pensando, porém, se essas fórmulas biológicas têm mais do que um simples valor analógico.

Depois das grandes mortandades ocorre geralmente uma fase de paz mais ou menos prolongada. Os que atribuem ao número a causa principal da inclinação bélica dos homens evocam o "efeito demográfico" das guerras. Os que imaginam haver uma espécie de alternância entre expansão e contração, vitalidade belicosa e recuperação, explicam as explosões de violência pelas leis misteriosas da vida coletiva.


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=eEbsXExR42M