domingo, 4 de setembro de 2016

Ninguém é perfeito

Trechos de Ninguém É Perfeito (2002), biografia de Billy Wilder escrita por Charlotte Chandler.


Depois do começo da guerra em 1914, Billie passou o mês de agosto com sua avó. Estava quente, e ele passou a maior parte do tempo dentro de casa, sentado numa cadeira de balanço Thonet, lendo e pensando.

Então, repentinamente, tiveram que fugir para Nowy Tang porque a guerra estava chegando perto demais.

Era o começo da vida de Billy Wilder como refugiado, embora para uma criança, parecesse uma aventura. Foram para o Hotel City, na Cracóvia.

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Então, o aparentemente imutável mundo do Império Austro-Húngaro mudou.

"Eu estava no hotel de meu pai na Cracóvia, em junho de 1914, e havia pessoas sentadas no terraço comendo e bebendo enquanto a orquestra tocava a abertura de O Poeta e o Camponês de von Suppé. Meu pai foi até o palanque dos músicos, fez um sinal para que a orquestra parasse de tocar e disse: 'Senhoras e senhores, não haverá mais música hoje. Nosso arquiduque Ferdinand foi assassinado em Sarajevo.'"

A Primeira Guerra Mundial começou cerca de um mês depois. Numa decisão que veio a ser desastrosa, as forças de reserva da monarquia foram enviadas ao front sérvio no final de julho, expondo o front galego a um avanço russo.

Temendo uma invasão dos russos pelo leste, os que puderam partiram, lotando os trens. A família Wilder, sem conseguir lugar, teve de viajar de volta a Viena de carruagem e cavalo alugados. Ao contrário de muitos, no entanto, tinham um lar para o qual retornar em Viena.

"O tempo de meu pai estava contra ele. Uma bala em Sarajevo matou o sobrinho de Franz Joseph. Mas ela também atingiu nossa família. O mundo ainda não superou aquilo. O mundo no qual eu havia nascido, a monarquia austro-húngara, havia sido aniquilada. Não sabíamos o que estava por vir."

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Em 21 de novembro de 1916, depois de um reinado de 68 anos, o imperador Franz Joseph I morreu aos 87 anos de idade.

Max Wilder, ciente da magnitude do momento, escolheu um local ideal para ele e seu filho de dez anos verem o cortejo fúnebre. Levou Billie ao Café Edison, de cujo ângulo privilegiado poderiam observar toda a procissão.

Max comprou de um vendedor um programa de lembrança para o filho e disse para guardá-lo. "Era exatamente como os que recebemos no teatro. Eu o perdi há muito tempo - como minha vida em Viena."

"Alguém disse a meu pai que antes de o caixão ser fechado, Katharina Schratt, a atriz-amante do imperador, colocou duas rosas brancas sobre o peito dele. Na época, eu não sabia o que era uma amante. Mal sabia o que era uma atriz, mas fiquei muito impressionado com aquelas duas rosas. Lembrei-me daquelas rosas anos mais tarde para a cena do funeral em Fedora."

"Meu pai disse: 'Você se lembrará deste dia pelo resto de sua vida.' Ergueu-me sobre uma mesa de mármore ao lado de uma janela no segundo andar, de onde eu podia olhar para fora e ver as pessoas formando filas compridas e silenciosas ao longo da rua. Jamais esquecerei aquele silêncio."

"Depois de uma longa espera, o cortejo fúnebre passou, lentamente, com todas as pessoas vestidas de preto. Nunca tinha visto tanto negro. Os homens vestiam ternos pretos, e os soldados, uniformes pretos."

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"Meu pai apontou para o carro fúnebre e disse: 'Ali está o que restou de seu velho imperador.' Então apontou para um menininho montado sobre um cavalo e disse: 'Ali está seu futuro imperador, Otto von Habsburg.' Bom, meu pai não estava sempre certo."

Vinte e cinco anos mais tarde, depois que Billy Wilder havia se tornado um dos mais importantes roteiristas de Hollywood, recebeu uma visita na Paramount que o fez recordar aquele momento.

"Era Otto von Habsburg. Ele queria saber se era o momento certo para um filme espetacular sobre a monarquia do Danúbio."

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VIENA, CIDADE DOS SONHOS PERDIDOS

"Em Viena, durante a Primeira Guerra Mundial", disse-me Wilder, "todo mundo tinha fome. Eu varria as ruas para conseguir um dinheirinho extra e comprar um pouco de comida. Meu irmão e eu ficávamos o dia numa fila para conseguir algumas batatas. Às vezes fazia muito frio. Era o Hungerwinter [Inverno de fome]."

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"Durante a guerra, meu pai foi soldado da reserva do exército. Foi o único período em que teve um emprego normal. Na guerra, as pessoas faziam o que precisavam fazer. Era um tempo para sobreviver um dia de cada vez."

Quando o Hotel City transformou-se numa empresa falida num país estrangeiro, a Polônia, Max Wilder viu-se forçado a vender seu sonho pelo que conseguisse. "O Império Austro-Húngaro estava quebrado. Muitos haviam morrido por nada."

Em novembro de 1918, o armistício detonou a desordem em Viena. "Os soldados voltaram. Havia aqueles que deixaram pedaços de si mesmos nos campos de batalha - uma perna, um braço, um olho. Eles acreditavam que seriam recebidos como heróis. Estavam errados. As pessoas não queriam ser lembradas do que houve. Os soldados rapidamente trocaram os uniformes por roupas civis. Dava para saber que eram soldados porque, como não haviam se alimentado direito no front, as roupas ficavam folgadas neles. O resto de nós também estava magro, mas as roupas haviam se acostumado a isso."


Mais:
http://www.youtube.com/watch?v=54JQqxcqsWQ
http://www.youtube.com/watch?v=7jOVRKzwURY