domingo, 14 de agosto de 2016

O manto verde

Trechos de O Manto Verde (1916), de John Buchan.


Eu acabara de tomar o café da manhã e estava enchendo meu cachimbo quando recebi o telegrama de Bullivant. Foi em Furling, a grande casa de campo em Hampshire, para onde eu viera convalescer depois da batalha de Loos.

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O nome Bullivant me fazia voltar dezoito meses no tempo, ao caloroso verão que antecedeu a guerra. Não via o sujeito desde então, embora tivesse lido sobre ele nos jornais. Fazia mais de um ano que eu era um oficial de batalhão ocupado, sem pensar em nada a não ser lapidar matéria bruta até transformá-la em bons soldados. Vinha me saindo bastante bem, e nunca houve na face da Terra ninguém mais orgulhoso que Richard Hannay quando conduziu seus Lennox Highlanders pelos baluartes naquele sangrento e glorioso 25 de setembro [1915, Segunda Batalha de Champagne]. Loos não foi nenhum passeio, e nós havíamos passado por poucas e boas antes disso, mas a pior parte da campanha que pude testemunhar foi um chazinho de aquecimento para o espetáculo ao qual compareci com Bullivant antes do começo da guerra.

A visão daquele nome em um telegrama parecia mudar toda a minha perspectiva de vida. Eu esperara pelo comando do batalhão e ansiara por tomar partido no fim dos boches. Mas aquela mensagem levou meus pensamentos para um novo rumo. Podia haver outras coisas na guerra além do confronto direto. Por que diabos o Ministério das Relações Exteriores queria falar com um obscuro major do New Army com tanta urgência?

- Vou para a cidade no trem das dez - anunciei. - Volto a tempo para o jantar.

- Procure meu alfaiate - disse Sandy. - Ele tem muito bom gosto para insígnias vermelhas. Pode mencionar meu nome.

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Nunca suportaria Londres durante a guerra. Parecia ter perdido o rumo e se deixado invadir por todo tipo de distintivos e uniformes, que não se adequavam à minha noção da cidade. Sentia-se mais a guerra pelas ruas do que no campo, ou, ainda, dava para sentir a confusão da guerra sem sentir seu propósito. Arrisco dizer que era um bom lugar, mas, depois de agosto de 1914, não consegui passar um único dia na cidade sem voltar para casa deprimido até os ossos.

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- Então, Major Hannay - disse ele, atirando-se em uma poltrona ao lado da lareira -, o que tem achado do serviço militar?

- Muito bem - respondi -, embora não seja exatamente o tipo de guerra que eu teria escolhido. É um negócio desconfortável e sangrento. Mas agora sabemos tudo sobre aqueles boches, teimosos ao extremo. Espero voltar para o front em uma semana ou duas.

- Você vai conseguir o batalhão? - perguntou. Ele parecia estar seguindo minhas atividades bem de perto.

- Acho que tenho uma boa chance. Mas não estou nesta atividade pela honra e pela glória. Quero fazer o melhor que posso, mas gostaria muito de que já houvesse terminado. Só consigo pensar em sair inteiro desse conflito.

Ele riu.

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- O Departamento de Guerra está insatisfeito comigo? - perguntei com severidade.

- Eles estão profundamente satisfeitos. Propuseram dar-lhe o comando do seu batalhão. Muito em breve, se escapar de uma bala perdida, você sem dúvida será um Brigadeiro. É uma ótima guerra para a juventude e para a inteligência. Mas... presumo que você esteja no ofício para servir ao seu país, Hannay?

- Acredito que sim - eu disse. - Sem dúvida não estou nisso pela minha saúde.

Ele olhou para a minha perna, no ponto em que os médicos haviam escavado os fragmentos da bala, e sorriu de modo zombeteiro. - De volta à forma? - perguntou.

- Firme como um cassetete.

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- A frente de batalha hoje pede o mediano, não o excepcional da natureza humana. É como uma grande máquina em que as partes são padronizadas. Você está lutando não porque lhe falte um emprego, mas porque quer ajudar a Inglaterra.

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- Acredito - disse ele - que suas viagens não se estenderam para o Oriente.

- Não - eu disse. - A não ser por uma viagem de caça pelo Leste da África.

- Por acaso você tem acompanhado a nossa campanha por lá?

- Tenho lido os jornais com bastante regularidade desde que fui parar no hospital. Tenho alguns amigos em ação na Mesopotâmia, e é claro que quero saber o que vai acontecer em Galípoli e na Tessalônica. Imagino que o Egito esteja bem seguro.

- Se me conceder sua atenção por dez minutos, vou complementar suas leituras de jornal.

Sir Walter recostou-se em uma poltrona e começou a falar para o teto. Foi a melhor história, a mais clara e completa, que eu já ouvi sobre qualquer parte da guerra. Ele me contou como, por que e onde a Turquia havia saído dos trilhos. Ouvi sobre as reclamações dela em relação ao nosso ataque a seus encouraçados, sobre o dano que a chegada do Goeben havia provocado, sobre Enver e seu precioso Comitê e a maneira como eles haviam apertado o cinto dos turcos. Quando já havia falado por algum tempo, voltou suas indagações para mim.

- Você é um sujeito inteligente. Deve estar se perguntando como um aventureiro polaco, isto é, Enver, e um grupo de judeus e ciganos conseguiram controlar uma raça orgulhosa. O homem comum lhe diria que foi uma organização alemã respaldada por dinheiro alemão e armas alemãs. Você continuaria se questionando, agora, já que a Turquia é antes de tudo uma potência religiosa, se o Islã teve um papel tão pequeno assim nisso tudo. O Sheikh-ul-Islam está sendo negligenciado, e, embora o Kaiser tenha proclamado uma Guerra Santa, chamando a si mesmo de Hadji Mohammed Guilliamo e alegando que os Hohenzollern descendem do profeta, isso parece ter caído por terra. Mais uma vez, o homem comum responderia que na Turquia o Islã está se tornando coisa do passado e que os canhões Krupp são os novos deuses. Ainda assim, não sei. Não acredito muito que o Islã esteja se tornando coisa do passado.

Ele prosseguiu:

- Veja as coisas de outro modo. Se fossem apenas Enver e a Alemanha que estivessem arrastando a Turquia para a guerra europeia por propósitos pelos quais nenhum turco daria nada, nós esperaríamos encontrar o exército de sempre obediente a Constantinopla. Mas, nas províncias, onde o Islã é forte, haveria problemas. Muitos de nós contávamos com isso. Mas nos decepcionamos. O exército sírio é tão fanático quanto as hordas do Madhi. Os Sanussi assumiram algum controle sobre o jogo. Os muçulmanos persas estão ameaçando causar encrenca. Há um vento seco soprando pelo Oriente, e os gramados áridos aguardam a centelha. E o vento sopra em direção à fronteira da Índia. De onde você acha que vem esse vento?

Sir Walter baixara a voz e falava de modo lento e distinto. Dava para ouvir as gotas de chuva pingando das calhas da janela e, à distância, a buzina dos táxis no Palácio de Whitehall.

- Você tem alguma explicação, Hannay? - voltou a perguntar.

- Parece que o Islã tem uma influência maior do que pensávamos - respondi. - Imagino que a religião seja a única coisa que costura um império tão disperso.

- Você está certo - ele disse. - Você tem que estar certo. Nós rimos da Guerra Santa, da Jihad que o velho Von der Goltz profetizou. Mas acho que aquele velho idiota de óculos grossos estava certo. Há uma Jihad em preparação. A questão é como.

- Me enforquem se eu estiver enganado - disse eu -, mas aposto que a Jihad não vai ser travada por um bando de robustos oficiais alemães portando pickelhaubes na cabeça. Imagino que não se possam manufaturar Guerras Santas só com canhões Krupp, alguns poucos oficiais e um cruzador de batalha a plenas caldeiras.

- De acordo. Eles não são bobos, por mais que tentemos nos persuadir do contrário. Mas suponhamos que tivessem alguma tremenda sanção sagrada, algo divino, algum livro ou evangelho ou um novo profeta saído do deserto, alguma coisa que lançasse sobre o mecanismo feio da guerra alemã o glamour das velhas incursões torrenciais que dobraram o Império Bizantino e abalaram os muros de Viena. O Islã é um credo guerreiro, e o mulá ainda está sobre o púlpito com um Alcorão em uma das mãos e uma espada em riste na outra. Suponhamos que houvesse alguma Arca Sagrada que atiçasse o mais remoto camponês muçulmano com sonhos do Paraíso. O que aconteceria, meu amigo?

- O inferno se instalaria muito em breve por aquelas bandas.

- Inferno que pode se espalhar. Além das fronteiras da Pérsia, lembre-se, fica a Índia.

- Isso são suposições. O que o senhor sabe? - perguntei.

- Muito pouco, a não ser o fato. Mas o fato é alheio a qualquer disputa. Tenho relatórios de agentes em toda parte, caixeiros-viajantes no Sul da Rússia, vendedores de cavalos no Afeganistão, mercadores turcomanos, peregrinos a caminho de Meca, xeques no Norte da África, navegadores na costa do mar Negro, pastores de ovelhas mongóis, faquires hindus, negociantes gregos no Golfo, assim como respeitáveis cônsules falando em código. Todos contam a mesma história. O Oriente está esperando uma revelação. Uma revelação foi prometida. Alguma estrela, ou homem, profecia, badulaque está vindo do Ocidente. Os alemães sabem, e é essa carta que eles vão usar para assombrar o mundo.

- E a missão que o senhor tem para mim é ir lá e descobrir?

Ele assentiu com gravidade:

- Essa é a missão louca e impossível. [...]

- O único turco que eu vi na vida foi um camarada que fazia luta livre num espetáculo em Kimberley. Vocês escolheram talvez o homem mais inútil da Terra.


Mais:
http://fantastic-writers-and-the-great-war.com/war-experiences/john-buchan
http://www.theguardian.com/books/100-best-novels-39-thirty-nine-steps-john-buchan