domingo, 1 de novembro de 2015

A Cripta dos Capuchinhos

Trechos de A Cripta Dos Capuchinhos (1938), de Joseph Roth.


Estávamos nas vésperas da Grande Guerra e dominava então uma onda de arrogância desdenhosa, um reconhecimento frívolo da chamada "decadência", um cansaço um tanto teatral e exagerado, um tédio sem razão. Nessa atmosfera vivi os melhores anos da minha vida.

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Só muito mais tarde, muito tempo depois da Grande Guerra, chamada "Guerra Mundial", justificadamente na minha opinião: e na verdade não por ter sido combatida por todo o mundo, mas por nós todos em consequência dela termos perdido um mundo, o nosso mundo. Só muito mais tarde, portanto, eu veria que até mesmo paisagens, campos, nações, raças, choupanas, cafés, de diferentes espécies e de diferentes proveniências devem se submeter à lei perfeitamente natural de um espírito forte, capaz de trazer o distante para perto, tornar o estrangeiro um parente e unir o que aparentemente se acha disperso.

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Meu primo Joseph Branco e seu amigo o cocheiro Manes Reisiger eram ambos soldados da reserva. Eles também teriam que se alistar. Na noite daquela sexta-feira em que o manifesto do Imperador fora afixado às paredes fui, como de hábito, ao cassino para jantar com os meus amigos do Nono dos Dragões. Não podia compreender o apetite deles, a habitual animação, nem a tola indiferença diante da ordem de marchar para Radziwillow, a nordeste da fronteira russa.

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Vai ser uma grande guerra, longa, e quem de nós três voltará, ninguém pode saber. Pela última vez sento-me aqui ao lado da minha mulher, diante da mesa da ceia de sexta-feira, diante das velas do sabat. Façamos uma digna despedida, meus amigos; tu, Branco, e o senhor! - E para uma despedida realmente digna decidimos, os três, ir ao bar do Jadlowker da fronteira.

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Eu me sentia então igualmente feliz na contemplação da doença que se anunciava pelo mundo, isto é, a Guerra Mundial. Podia também ao mesmo tempo dar curso livre a todos os meus sonhos febris que de outro modo teria reprimido.

Sentia-me tão liberado quanto ameaçado.

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- Agora é a guerra, mamãe - respondi eu - e vim para me despedir de você... E também para me casar com Elisabeth antes de partir.

- Para que casar - perguntou minha mãe -, já que de qualquer modo você tem que partir para a guerra?


Aqui também ela falava como as mães falam. Se ela tinha que deixar o seu filho, seu único filho ainda por cima, ir ao encontro da morte, pelo menos que fosse ela sozinha a entregá-lo à morte. Não queria repartir nem a posse, nem a perda com outra mulher.

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A colorida animação da cidade real, capital do país e sede do governo alimentava-se bem claramente - tantas vezes meu pai dissera isso - do trágico amor das regiões da Coroa pela Áustria: trágico, porque eternamente não correspondido. Os ciganos, os huzulos subcarpáticos, os cocheiros judeus da Galícia, os meus próprios parentes, os vendedores de castanhas assadas de Sipolje, os plantadores de tabaco suábios de Bacska, os criadores de cavalos das estepes, os otomanos de Sibersna, os da Bósnia e Herzegovina, os mercadores de cavalos de Hanakei na Morávia, os tecelões de Erzgebirg, os moleiros e negociantes de corais de Podólia.

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Apresentei-lhe logo o meu problema. Tentei também explicar por que queria ir para o Trinta e Cinco.

- Se ainda o encontrares! - disse Stellmacher. - Más notícias! Dois regimentos quase totalmente aniquilados em retirada catastrófica. Nossos chefes superidiotas nos prepararam bem! Mas tudo bem! Vai para lá, vê se encontras o teu Trinta e Cinco. Compra para ti duas estrelinhas. És transferido como tenente. Servus! Retirar! - Estendeu-me a mão sobre a escrivaninha.

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Numa madrugada, os russos caíram em cima de nós. E já não tínhamos tempo de nos entrincheirar.

Esta foi a histórica batalha de Krasne-Busk, na qual um terço do nosso regimento foi aniquilado e um segundo terço aprisionado.

Tornamo-nos assim também prisioneiros Joseph Branco, Manes Reisiger e eu. Desta forma, tão ingloriamente terminou nossa primeira batalha.

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Na véspera de Natal de 1918, eu estava de volta. O relógio da Estação Oeste indicava onze horas. Tomei a rua Maria Hilfe, uma chuva granulosa, neve gorada e triste, irmã do granizo caía obliquamente de um céu inclemente. O meu capote estava nu, tinham-lhe tirado as insígnias, a minha gola estava nua, tinham-lhe arrancado as estrelas. Eu mesmo estava nu. As pedras estavam nuas, os muros e os telhados também. Nus estavam os poucos lampiões. A chuva granulosa batia nos seus vidros foscos, como se o céu mandasse grãos de areia contra grandes bolas de gude miseráveis. Os capotes dos guardas diante dos edifícios públicos abanavam ao vento e as suas abas se enfunavam apesar de molhadas. As baionetas caladas não pareciam de verdade, e as espingardas pendiam oblíquas dos ombros dos soldados. Parecia que as espingardas quisessem se deitar para dormir, cansadas como nós de quatro anos de tiros. Não fiquei de modo algum espantado que os soldados não me saudassem; meu capote nu, a gola nua da minha túnica não obrigavam ninguém a isso. Não me rebelava. Era apenas deplorável. Era o fim. Pensei no velho sonho do meu pai, o de uma monarquia tríplice, sonho que ele me destinara a tornar real um dia. Meu pai jazia no Cemitério de Hietzinger e o Imperador Francisco José, de quem ele fora fiel desertor, na Cripta dos Capuchinhos.

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- Vá dormir! Boa-noite.

Beijei-lhe a mão, ela beijou-me a testa. Sim, essa era a minha mãe! Era como se nada tivesse acontecido, como se eu não estivesse acabando de chegar da guerra, como se o mundo não estivesse em ruínas, a Monarquia destruída, como se a nossa velha pátria com suas leis, costumes, usos, tendências, hábitos, virtudes, vícios múltiplos, incompreensíveis, mas inamovíveis, ainda existisse.

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- Do que é que você quer viver? O que você sabe fazer, aliás? Antes da guerra você era um jovem rico, de boa sociedade, isto é, daquela sociedade a que pertencia o meu Bubi. - Bubi era o meu cunhado, que eu não podia suportar. Tinha-me esquecido dele totalmente.

- Onde está ele? - perguntei.

- Morto! - Respondeu meu sogro. Ficou calado, e de um só trago esvaziou o copo. - Caiu em 1916 - acrescentou. Pela primeira vez ele me pareceu próximo e íntimo. - Portanto - continuou ele -, você nada possui e não tem profissão. Eu próprio sou conselheiro comercial e até ganhei título de nobreza. Mas agora isso nada significa. A intendência do exército ainda me deve muitos milhares. Não vai me pagar. Tenho apenas crédito e um pouco de dinheiro no banco.

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Ele virava-se para nós, deixava os cavalos trotarem à vontade por alguns minutos e contava toda espécie de histórias. O filho dele era estudante; voltara da guerra ativista comunista.

- Meu filho diz - falava o Senhor Xavier - que o capitalismo já passou. Já não me chama de pai. Chama-me Vossa Senhoria! Tem boa cabeça. Sabe tudo que ele quer. Dos meus cavalos nada entende.

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No outono recebemos uma visita inesperada: meu primo Joseph Branco. Veio pela manhã, exatamente como da primeira vez que nos encontramos e como se nada tivesse acontecido entrementes, como se não tivéssemos suportado uma guerra mundial, como se ele não tivesse estado com Manes e eu prisioneiros, junto a Baranovitsch e depois no campo; como se agora a nossa terra não estivesse aniquilada. Assim chegou ele, meu primo, o vendedor de castanhas assadas com suas castanhas, sua mula, de rosto queimado, no entanto, brilhando dourado como um sol. Como todos os anos, como se nada tivesse acontecido, chegara Joseph Branco para vender suas castanhas.

Tinha a barba grisalha emaranhada. Parecia o inverno representado nos primitivos livros de contos de fadas.

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Também naquela noite fui ao Café Lindhammer, e fiz de conta que não estava tão excitado como os outros. Pois eu me via há muito tempo, desde que voltara da guerra, como uma pessoa sem direito à vida. Tinha me habituado há muito tempo a contemplar nos jornais os acontecimentos chamados históricos com o olhar imparcial de alguém que já não pertencesse a esse mundo. Fora há multo tempo licenciado pela morte por prazo ilimitado! E ela, a morte, podia a qualquer momento interromper a minha licença. No que podiam me interessar ainda as coisas deste mundo?...

No entanto elas me preocupavam, especialmente naquela sexta-feira.