domingo, 11 de outubro de 2015

O último verão europeu

Trechos do prólogo de O Último Verão Europeu (2004), de David Fromkin.


Especialistas citados pelos meios de comunicação acreditavam que o voo 826 [United Airlines] havia sido vítima [em 1997] do que eles chamam de "turbulência de céu ou ar claro". Eles a associavam a um tornado horizontal, mas um tornado que não se pode ver. Alguns dos especialistas entrevistados expressaram sua esperança de que em poucos anos algum tipo de tecnologia de radar fosse desenvolvido para detectar essas tempestades invisíveis antes de elas romperem. A transparência da atmosfera significa pouco, aprendeu o público deste episódio; o céu calmo pode irromper em fúria tão repentinamente quanto o oceano.

Especula-se que algo parecido com esse ataque de turbulência de céu claro tenha ocorrido com a civilização europeia em 1914, durante a sua passagem do século XIX para o século XX. O mundo da década de 1890 tinha sido, à semelhança da nossa própria época, um tempo de congressos internacionais, conferências de desarmamento, globalização da economia mundial e iniciativas visando implantar algum tipo de liga de nações para banir a guerra. O público esperava que um longo período de paz e prosperidade se estendesse indefinidamente.

Em vez disso, o mundo europeu mergulhou descontrolado, despedaçando-se e explodindo em décadas de tirania, guerra mundial e assassinato em massa. Que tornado terá varrido a Velha Europa civilizada e o mundo que ela então dominava? Retrospectivamente, a passagem pode ser menos misteriosa do que imaginaram alguns contemporâneos que a experimentaram. Os anos de 1913 e 1914 foram anos de perigos e distúrbios. Nas primeiras décadas do século XX, havia sinais de que a catástrofe poderia eclodir logo adiante; nós podemos vê-los agora, os líderes militares e políticos podiam vê-los então.

O céu de onde despencou a Europa não estava vazio; ao contrário, estava carregado de processos e poderes. As forças que iriam dilacerá-lo - nacionalismo, socialismo, imperialismo e afins - estavam havia muito em movimento. O mundo europeu já vinha sendo assaltado por ventos de grande altitude. Havia muito navegava em céus perigosos. O comandante e a equipagem o sabiam. Mas os passageiros, pegos completamente de surpresa, ficaram se perguntando insistentemente: por que não receberam aviso algum?

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No verão de 1914, estourou na Europa uma guerra que se espalhou pela África, Oriente Médio, Ásia, Pacífico e Américas. Hoje, um tanto imprecisamente conhecida como Primeira Guerra Mundial, ela acabou se tornando, sob muitos pontos de vista, o maior conflito que o planeta jamais tinha conhecido. E mereceu o nome pelo qual então foi chamada: a Grande Guerra.

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Na Alemanha e na França, nações que apostaram toda a sua população masculina no resultado, 80% de todos os homens foram convocados. Nos choques armados decorrentes, eles foram massacrados.

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Por mais esmagadores que sejam, os números não logram contar toda a história ou traduzir integralmente o impacto da guerra sobre o mundo de 1914. As consequências das mudanças engendradas pela crise da civilização europeia são demasiado numerosas para serem especificadas, e na sua extensão e profundidade, fizeram dela o ponto crítico da história moderna. E isto seria verdadeiro mesmo que, como sustentam alguns, a guerra só tenha acelerado algumas das mudanças induzidas pela crise.

Em 8 de agosto de 1914, apenas quatro dias após a entrada da Grã-Bretanha na guerra, o Economist de Londres a descreveu como "talvez a maior tragédia da história humana".

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Fritz Stern, um dos mais destacados estudiosos de assuntos alemães, escreve sobre "a primeira calamidade do século XX, a Grande Guerra, da qual decorreram todas as outras calamidades".

Os terremotos militares, políticos, econômicos e sociais acarretaram um novo desenho do mapa do mundo. Impérios e dinastias foram varridos. Novos países tomaram seus lugares. A desintegração da estrutura política do globo prosseguiu ao longo do século XX. Hoje, a terra é divida em quatro vezes mais Estados independentes do que os existentes quando os europeus entraram em guerra em 1914. Muitas das novas entidades - Jordânia, Iraque e Arábia Saudita são exemplos que vêm à mente - são países que nunca antes existiram.

A Grande Guerra engendrou forças terríveis que assolariam o restante do século. [...] O bolchevismo foi apenas a primeira dessas fúrias nascidas da guerra, seguido anos depois pelo fascismo e pelo nazismo.

Entretanto, a guerra também pôs em movimento os dois grandes movimentos de libertação do século XX. Ao mesmo tempo em que se dilacerava a Europa, desfazia-se a sua dominação no restante do planeta. E ao longo do século, literalmente bilhões de pessoas alcançaram a sua independência. As mulheres, também, em algumas partes do mundo, libertaram-se de alguns grilhões do passado, ao que tudo indica em consequência direta do seu envolvimento no esforço de guerra - empregos nas fábricas e nas forças armadas -, iniciado em 1914.

Um outro tipo de libertação, de alcance amplo e diversificado, resultou da Grande Guerra e vem se expandindo desde então, em termos de comportamento, vida sexual, costumes, vestuário, linguagem e nas artes. Nem todos acreditam que o fato de tantas regras e restrições terem ficado pelo caminho seja uma coisa boa. Mas para o bem ou para o mal, o mundo percorreu um longo caminho - da era vitoriana ao século XXI - por sendas que foram abertas pelos soldados de 1914.

Ao pesquisar a origem de qualquer das grandes questões que confrontaram o mundo durante o século XX, ou que o confrontam hoje, é notável a frequência com que retornamos à Grande Guerra. Como observou George Kennan, "a mim parece que todas as linhas de investigação remontam a ela". Depois dela, as opções se estreitaram ainda mais. Os Estados Unidos e a Grã-Bretanha tiveram escolha, por exemplo, de entrar ou não na Primeira Guerra Mundial - e sem dúvida há desacordo até hoje sobre o seu acerto ou não de tê-lo feito -, mas, realisticamente, os dois países tiveram pouca ou nenhuma escolha quanto a entrar ou não na batalha da Segunda.

Nada houve de inevitável na progressão do primeiro para o segundo conflito. O longo pavio podia ter sido cortado em muitos pontos ao longo do caminho de 1914 a 1939, mas o fato é que ninguém o cortou. Assim, a Primeira Guerra Mundial realmente levou à Segunda, ainda que não tivesse necessariamente de fazê-lo, e a Segunda, tivesse ou não de fazê-lo, levou à Guerra Fria. Em 1991, os historiadores Steven E. Miller e Sean M. Lynn-Jones afirmaram: "A maioria dos observadores descreve o período atual da política internacional como a era 'pós-Guerra Fria', mas de muitas maneiras nosso tempo seria mais bem definido como a era 'pós-Primeira Guerra Mundial'."

Desde o começo, a explosão de 1914 pareceu desencadear uma série de reações, e a seriedade das consequências rapidamente se tornou aparente para os contemporâneos: na introdução ao seu livro A Montanha Mágica (1924), Thomas Mann escreveu sobre "a Grande Guerra, em cujo começo tantas coisas começaram, que ainda mal pararam de começar".

E tampouco hoje deixaram inteiramente de fazê-lo. Em 21 de abril de 2001, o New York Times noticiava, da França, o retorno ao lar de milhares de pessoas que haviam sido temporariamente evacuadas de suas casas por causa da ameaça decorrente de sobras de munições da Primeira Guerra Mundial estocadas à proximidade. Havia cartuchos, granadas e bombas, e cápsulas de gás mostarda. Os evacuados receberam permissão para retornar às suas casas após a remoção de 50 toneladas das munições mais perigosas. Porém, restaram centenas de toneladas de materiais letais - e ainda restam. Assim, bombas da guerra de 1914 ainda podem explodir em pleno século XXI.

Em certo sentido, não há dúvida, já explodiram. Em 11 de setembro de 2001, os ataques suicidas muçulmanos fundamentalistas contra o World Trade Center, em Nova York, destruíram o coração de Lower Manhattan e ceifaram cerca de 3 mil vidas. Em sua primeira declaração televisionada após os fatos, Osama bin Laden, o chefe terrorista que evocou este horror e ameaçou com ainda mais, descreveu o atentado como uma vingança pelo que havia ocorrido oitenta anos antes. Fazia provavelmente referência à intrusão, na esteira - e como consequência - da Primeira Guerra Mundial, dos impérios cristãos europeus no Oriente Médio, até então governado por muçulmanos. Os simpatizantes de Bin Laden sequestraram aviões a jato e os esmagaram contra as torres gêmeas em consequência de uma disputa aparentemente enraizada nos conflitos de 1914.

De forma semelhante, a escalada da crise do Iraque em 2002-2003 levou jornalistas e personalidades do rádio e da televisão aos seus telefones, à procura dos professores de história das principais universidades americanas, para perguntar como o Iraque surgiu como Estado das cinzas da Primeira Guerra Mundial. Eis uma pergunta relevante, pois não tivesse havido guerra em 1914, o Iraque poderia muito bem não existir em 2002.

Trata-se certamente do acontecimento mais seminal dos tempos modernos.

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Para aqueles com uma renda confortável, o mundo da sua época era mais livre do que o de hoje. [...] Podia-se ir praticamente a toda parte no mundo, sem a permissão de alguém. Para a maior parte dos lugares, você nem precisava de passaporte, e muitos viajaram. O geógrafo francês André Siegfried deu a volta ao mundo sem qualquer identificação além do cartão de visitas: sequer o seu cartão profissional, apenas o pessoal.

Admirado, John Maynard Keynes lembra o período como uma época sem controles comerciais ou alfândegas. Você podia entrar com o que quisesse na Grã-Bretanha ou mandar qualquer coisa para fora. Podia levar qualquer soma em dinheiro quando viajasse, ou enviar (ou trazer de volta) qualquer quantia; seu banco não informava ao governo, como é feito hoje em dia. E se você decidisse investir qualquer quantia em quase todos os países estrangeiros, não havia alguém a quem devesse pedir permissão, e tampouco era necessária autorização para retirar o investimento ou qualquer lucro que possa ter dado quando quisesse fazê-lo.

Muito mais do que hoje, era um tempo de fluxos livres de capital e de movimentos livres de pessoas e mercadorias. Um notável estudo em andamento do mundo no ano 2000 nos mostra que havia mais globalização antes da guerra de 1914 do que há agora.

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Os contatos e a interdependência econômicos e financeiros estavam entre as poderosas tendências que faziam parecer que a guerra entre as principais potências europeias tinha se tornado impraticável - e certamente obsoleta. Era fácil sentir-se seguro naquele mundo.