Trechos de O Baile Do Conde d'Orgel (1924), de Raymond Radiguet.
Durante a guerra, lhe foi dado aproximar-se de homens de classes variadas, e por isso a guerra o divertia.
Esse divertimento impediu que tirasse vantagem do seu heroísmo: tornou-se suspeito. Os generais não gostavam de um fanfarrão que falava sem medidas, não tinha a menor ideia do respeito hierárquico, pretendia dar informações sobre o estado de espírito e o ânimo da Alemanha, e não escondia que se correspondia, através da Suíça, com seus primos austríacos. Embora tenha merecido muitas vezes a condecoração mais elevada, esta nunca lhe foi concedida.
Seu pai era, para muitos, a causa dessa injustiça: ele era formidável. Nunca quis deixar seu castelo de Colomer, na Champanha. "Não acredito nos obuses", gritava a seu cocheiro, ao lhe ordenar que atrelasse os cavalos para o passeio cotidiano. As sentinelas pedindo-lhe a senha, respondia: "Sou Monsieur d'Orgel".
Incapaz de reconhecer insígnias, dizia "Senhor Oficial" a qualquer militar provido de galões, fosse sargento ou coronel. Vingavam-se dele pregando-lhe mil peças. Sob o pretexto de que a pátria precisava de pombos-correios, os oficiais, alojados no castelo, requisitaram as aves de seu columbário, que na mesma noite foram enriquecer as marmitas. Monsieur d'Orgel o soube e a partir desse dia repetiu: "Eu não sei o que vale Monsieur Joffre, mas seu pessoal não passa de um bando de escroques."
Pouco depois do desaparecimento dos pombos, sob o pretexto de que a torrezinha do columbário atrapalhava os tiros, e que Monsieur d'Orgel poderia fazer sinais a partir dali, foi dada a ordem de derrubá-la. Mas o ancião tinha mais orgulho dela que de seu castelo. Era um daqueles columbários cuja posse fora um privilégio feudal.
Então, na hora da retirada das nossas tropas, Monsieur d'Orgel não pareceu lamentar ver a praça tomada pelos alemães, cujos oficiais o trataram com mais consideração. O nome nobre os impressionava, e mais do que qualquer outro, dos Orgel, que, nos seus dicionários, ocupa duas ou três colunas. A Alemanha cuida da glória dos nossos emigrados, e os Orgel, no início da revolução, haviam partido para a Alemanha e a Áustria, onde haviam feito descendência.
Quando os alemães deixaram Colomer, Monsieur d'Orgel voltou a Paris, a fim de não mais rever nossos chefes. O elogio que fez da Alemanha comprometeu a condecoração do seu filho. "Os prussianos foram perfeitos", repetia. E louvava suas maneiras.
- Aliás - concluía -, nosso inimigo hereditário é a França.
Como Anne estava em combate e sua irmã cuidava dos feridos na linha de frente, o conde d'Orgel morreu numa noite de alerta, de uma parada cardíaca, no porão de seu palacete da rue de l'Université, cercado pelos criados: ele lhes explicava que nossos aviadores lançavam bombas falsas, por ordem do governo, para esvaziar Paris.
- - -
Devem os patrões se desentender por causa de uma briga entre empregados? Era assim que os Orgel da Áustria viam a guerra.
Pode-se dizer que se assiste ao climatério da Europa. Num momento tão trágico da vida desse continente, a frivolidade parece imperdoável aos olhos de um Paul Robin. Ele se engana. É nessas épocas perturbadoras que a leviandade e até a pouca vergonha são melhor compreendidas. Aproveita-se com avidez aquilo que amanhã pertencerá a outros.
- - -
- Como o senhor deve detestar esses bolcheviques! - disse Hester Wayne ao príncipe Naroumof.
Anne d'Orgel ficou irritado com essa exclamação absurda. Ele tinha desenvolvido uma agilidade de acrobata para evitar a Rússia, e estava agradecido à sua esposa. Atribuía-lhe seus próprios cálculos pueris; admirava-se por ter contornado tão bem a dificuldade, isolando-se com Naroumof. Ela o tratava com respeito e ao mesmo tempo impedia que a conversa sinistra se generalizasse.
Ora, eis que a americana destrói com uma única frase essa obra de arte.
O príncipe Naroumof hesitava, expressava-se com uma dificuldade que reforçava suas palavras bastante banais:
- Pode-se responsabilizar os homens por um terremoto? O que tem que acontecer acaba acontecendo. Creio que a França está muito inclinada a julgar a Revolução Russa a partir da sua.
- - -
Esse russo devia ser uma figura interessante para ousar não condenar os seus assassinos.
O conde d'Orgel não tomava posição. Ele não detestava nada que acrescenta brilho a uma recepção. À frase de Hester Wayne, tinha se eriçado. Em seguida, entusiasmou-se: "Eis um refugiado russo menos tedioso que os outros", disse para si mesmo.
- - -
Mme. d'Orgel, embora muito solicitada, mantinha-se à parte. Fazia companhia a Naroumof. Ele tinha conhecido aquele salão sob o reinado do falecido conde. Repetia: "A guerra enlouqueceu a todos."
Mais:
http://www.lrb.co.uk/v35/n06/aaron-matz/truants-and-cuckolds
http://www.youtube.com/watch?v=zTw-8zEuv1U
Durante a guerra, lhe foi dado aproximar-se de homens de classes variadas, e por isso a guerra o divertia.
Esse divertimento impediu que tirasse vantagem do seu heroísmo: tornou-se suspeito. Os generais não gostavam de um fanfarrão que falava sem medidas, não tinha a menor ideia do respeito hierárquico, pretendia dar informações sobre o estado de espírito e o ânimo da Alemanha, e não escondia que se correspondia, através da Suíça, com seus primos austríacos. Embora tenha merecido muitas vezes a condecoração mais elevada, esta nunca lhe foi concedida.
Seu pai era, para muitos, a causa dessa injustiça: ele era formidável. Nunca quis deixar seu castelo de Colomer, na Champanha. "Não acredito nos obuses", gritava a seu cocheiro, ao lhe ordenar que atrelasse os cavalos para o passeio cotidiano. As sentinelas pedindo-lhe a senha, respondia: "Sou Monsieur d'Orgel".
Incapaz de reconhecer insígnias, dizia "Senhor Oficial" a qualquer militar provido de galões, fosse sargento ou coronel. Vingavam-se dele pregando-lhe mil peças. Sob o pretexto de que a pátria precisava de pombos-correios, os oficiais, alojados no castelo, requisitaram as aves de seu columbário, que na mesma noite foram enriquecer as marmitas. Monsieur d'Orgel o soube e a partir desse dia repetiu: "Eu não sei o que vale Monsieur Joffre, mas seu pessoal não passa de um bando de escroques."
Pouco depois do desaparecimento dos pombos, sob o pretexto de que a torrezinha do columbário atrapalhava os tiros, e que Monsieur d'Orgel poderia fazer sinais a partir dali, foi dada a ordem de derrubá-la. Mas o ancião tinha mais orgulho dela que de seu castelo. Era um daqueles columbários cuja posse fora um privilégio feudal.
Então, na hora da retirada das nossas tropas, Monsieur d'Orgel não pareceu lamentar ver a praça tomada pelos alemães, cujos oficiais o trataram com mais consideração. O nome nobre os impressionava, e mais do que qualquer outro, dos Orgel, que, nos seus dicionários, ocupa duas ou três colunas. A Alemanha cuida da glória dos nossos emigrados, e os Orgel, no início da revolução, haviam partido para a Alemanha e a Áustria, onde haviam feito descendência.
Quando os alemães deixaram Colomer, Monsieur d'Orgel voltou a Paris, a fim de não mais rever nossos chefes. O elogio que fez da Alemanha comprometeu a condecoração do seu filho. "Os prussianos foram perfeitos", repetia. E louvava suas maneiras.
- Aliás - concluía -, nosso inimigo hereditário é a França.
Como Anne estava em combate e sua irmã cuidava dos feridos na linha de frente, o conde d'Orgel morreu numa noite de alerta, de uma parada cardíaca, no porão de seu palacete da rue de l'Université, cercado pelos criados: ele lhes explicava que nossos aviadores lançavam bombas falsas, por ordem do governo, para esvaziar Paris.
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Devem os patrões se desentender por causa de uma briga entre empregados? Era assim que os Orgel da Áustria viam a guerra.
Pode-se dizer que se assiste ao climatério da Europa. Num momento tão trágico da vida desse continente, a frivolidade parece imperdoável aos olhos de um Paul Robin. Ele se engana. É nessas épocas perturbadoras que a leviandade e até a pouca vergonha são melhor compreendidas. Aproveita-se com avidez aquilo que amanhã pertencerá a outros.
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- Como o senhor deve detestar esses bolcheviques! - disse Hester Wayne ao príncipe Naroumof.
Anne d'Orgel ficou irritado com essa exclamação absurda. Ele tinha desenvolvido uma agilidade de acrobata para evitar a Rússia, e estava agradecido à sua esposa. Atribuía-lhe seus próprios cálculos pueris; admirava-se por ter contornado tão bem a dificuldade, isolando-se com Naroumof. Ela o tratava com respeito e ao mesmo tempo impedia que a conversa sinistra se generalizasse.
Ora, eis que a americana destrói com uma única frase essa obra de arte.
O príncipe Naroumof hesitava, expressava-se com uma dificuldade que reforçava suas palavras bastante banais:
- Pode-se responsabilizar os homens por um terremoto? O que tem que acontecer acaba acontecendo. Creio que a França está muito inclinada a julgar a Revolução Russa a partir da sua.
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Esse russo devia ser uma figura interessante para ousar não condenar os seus assassinos.
O conde d'Orgel não tomava posição. Ele não detestava nada que acrescenta brilho a uma recepção. À frase de Hester Wayne, tinha se eriçado. Em seguida, entusiasmou-se: "Eis um refugiado russo menos tedioso que os outros", disse para si mesmo.
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Mme. d'Orgel, embora muito solicitada, mantinha-se à parte. Fazia companhia a Naroumof. Ele tinha conhecido aquele salão sob o reinado do falecido conde. Repetia: "A guerra enlouqueceu a todos."
Mais:
http://www.lrb.co.uk/v35/n06/aaron-matz/truants-and-cuckolds
http://www.youtube.com/watch?v=zTw-8zEuv1U