segunda-feira, 31 de outubro de 2011

The legend of Zilda

O Máiquel (argh... Jesus!) parecia ter um Desculpe qualquer coisa tatuado na acidentada testa de Cro-Magnon. E no traseiro acostumado a pontapés, um Agradecemos a preferência, desses de churrascaria com telão para transmitir jogo do Brasileirão. Ele tinha uma apagada e quase enfermiça cor roxa comum aos afogados e ao papel celofane de gosto suspeito.

Conheci-o quando fazíamos curso de montagem e manutenção de computadores no SENAC, ali na Tristão Gonçalves. Foi em uma ocasião, na cantina, eu mordiscando um oleoso pastel de queijo que ensopava o guardanapo, que o esquisitão dirigiu-se a mim pela inaugural vez. Eu sentava ao lado dele em uma das bancadas, na sala B4, os pares de alunos que observavam as CPUs de macarrônicas vísceras expostas, como numa aula de anatomia, tudo sob a veemente iluminação dos retângulos fluorescentes do teto. Essa proximidade geográfica deve tê-lo encorajado. Mau sinal. Em clima de confidência, ele contou que estava com dificuldades, se eu poderia esclarecer tal dúvida. Por que não fala com o professor, anta?, pergunta a esfinge. Em vão.

Rapaz, só sei que o hiena Hardy ficou de tramela solta e importunou-me com um resumo não-solicitado de sua vida. Descobri, e não me orgulho disso, que se tratava d'O pobrinho batalhador. Do tipo que se intimidava com a catraca high tech que permitia nossa entrada no prédio pela identificação do polegar encostado numa telinha de cristal. No infame covil em que morara com a mãe solteira, dois irmãos e uma irmã, um menos promissor que o outro, apelara, em deprimentes paródias de almoço, a um copo de aluá com uma lata de ervilhas fora do prazo de validade. A mãe, sem tostão nem profissão e desesperada, pensou até em envenenar piedosamente (?) as crias com cicuta, estricnina, o diabo. Narrativa pedestre e desinteressante, é óbvio. Foi salvo desse cotidiano de letra de rap ao ser amadrinhado por uma dondoca, tia distante já meio que enjoando do caviar e de Bariloche. A matrona endinheirada, sucesso no ramo da confecção, escapou do tédio quando virou moda no seu círculo de amigas a filantropia publicitária, como anteriormente haviam sido moda os estofados em tons de sépia, os bibelôs de material reciclado, os livros de Khalil Gibran e o penteado da Ana Maria Braga. Um arremedo desses programas de auditório nos quais o cara pega um portador-de-necessidades-financeiras-especiais e custeia reforma da casa, cesta básica, aparelho de estampar camiseta, giro de limusine, banho de loja, manicure, veterinário. Era ela quem pagava a mensalidade e auxiliava o pequeno Máiq a conquistar as tábuas do monte SENAC.

Os meses passaram e vieram os exames finais. No primeiro deles, o cidadão M apareceu trajando uma máscara de borocoxô que era um caso sério. Verdadeiro cão hidrófobo esperando injeção letal, resto de gato amassado com marca de pneu no dorso. Época atarefada no armazém em que trabalhava, explicou-me, nervoso. Estudara mal e porcamente para os testes práticos. Calma, relaxa, eu disse, esforçando-me para engolir um "seu trouxa". Uma dupla era sorteada e ia para uma bancada lá diante da turma inteira, onde estava um dos gabinetes de lateral aberta trazidos pelo grande professor Sérgio (grande mesmo: ótimo docente e mais de 1,90 de altura). A missão, achar o defeito que impedia a máquina de iniciar corretamente. Fui com o Rafa à mesa de operações. 2 minutos. Cronometrando. Valendo. Concentração agora. Ei, o que é aquilo? Um jumper encaixado nos pinos em posição 2-3, mas o certo seria em 1-2. Muito fácil.

- Tempo esgotado. Qual o diagnóstico, minha gente?

Respondemos.

- Experimentem.

Liga estabilizador. Aperta botão Power. O reconfortante e aprovador barulhinho do bip.

- Excelente. Voltem a seus lugares.

O ratinho assustado teve como companhia a garota que sempre chegava atrasada e nunca puxava conversa com alguém da classe. Tinha uns cabelos negros como a asa da graúna, um derrière imponente e maciço como uma Bastilha e uma comissão de frente herdada de alguma divindade babilônica. Rapidinho, botaram nela (epa) o apelido de Zilda. Boazilda, Gostosilda. Depois, espiando as assinaturas da lista de presença que ia de mão em mão, vimos que se chamava Karina. 2 minutos. Cronometrando. Valendo. Inclinados sobre o paciente, trocavam olhares clínicos de E então?. Nada. A fronte do bosquímano perlava-se de suor, um bolo obstruía-lhe a garganta. E pouco ajudava a visão daquele pedação de mulher recendendo a loção, curvada acima do amontoado de hardware, o avantajado busto saltando da folgada blusa estilo cigana. Ele mirava os fios em amarelo-preto-vermelho, mirava o nicho do par de fru
tões. Mirava a bateria de lítio, mirava os frutões. Os pentes de memória RAM, os frutões. Conectores do HD, frutões. Barramento PCI, frutões. Chipset, frutões.

- Tempo esgotado. Qual o diagnóstico, minha gente?

Um silêncio atordoante. Pressão demais. O mico Máiquel explodiu:

- O sutiã da Zilda é verde-malva com uns floreados em relevo.