No texto anterior, logo ali abaixo, mencionei o 1984 de Orwell e fiquei pensando, Quem aí leu Zamyatin? Quem aí ouviu falar de Zamyatin?
Conheci o escritor russo Yevgeny Zamyatin através do livro Os Eleitos, do jornalista americano Tom Wolfe. Depois de bastante procurar, consegui ler o principal romance do imaginativo eslavo, a ficção científica Nós (1924). Quando concluí a última página dessa claustrofóbica distopia, pude comprovar que era verdade o que comentavam por aí. É notória a influência sobre o best seller orwelliano. É evidente o caso de apropriação e reciclagem de situações. São gritantes as semelhanças entre as histórias. Observadores mais aguerridos chegam à acusação de plágio. Liberdade é escravidão, originalidade é cópia.
A imagem deste post é a capa de uma edição em inglês. Considerando o contexto, é uma das ilustrações mais criativas e geniais que já vi. A "despersonalização" das letras W e E, que se tornam praticamente indistinguíveis, perdendo sua individualidade e submetidas à fria coletividade dos bloquinhos empilhados.
Se for para resumir os conceitos por trás da obra, digo que se trata de uma crítica a pontos como a tentação do governismo totalitário, o abuso do racionalismo, a utopia do perfeccionismo intolerante, a face opressora do humanismo radical, o fetiche pelo jargão científico e pela mecanização, o remoto ideal platônico da expulsão dos poetas.
Chamou minha atenção o frequente uso de símiles, muitos deles baseados em assuntos da área de exatas. O autor era formado em Engenharia Naval e trabalhou vários anos nesse ramo. Alguns trechos:
"Logo me perguntei quase involuntariamente: 'Por que é belo tudo isto? Por que é bonita a dança?' A resposta foi: 'É um movimento regulado, não livre, porque seu sentido mais profundo é a submissão estética perfeita, a idealizada falta de liberdade.'"
"Pois os conceitos de liberdade e delito estão tão estreitamente vinculados como... digamos, por exemplo, como o movimento de um avião com sua velocidade: se a velocidade de um avião é zero, então este não se move; o que é absolutamente certo. Se a liberdade do homem é zero, então ele não comete delitos."
"Todo poeta autêntico é um Cristóvão Colombo. A América existia já há muitos séculos antes que Colombo a descobrisse. Do mesmo modo a tabela pitagórica existia já em potencial muitos séculos antes que R-13 nascesse, mas somente ele foi capaz de achar, na selva virgem das cifras, um novo Eldorado."
"Naquela época, o mar batia fortemente contra a costa e milhões de newtons, adormecidos na energia de suas ondas, eram úteis somente para despertar os cálidos sentimentos dos apaixonados. Nós, ao contrário daquele sussurro de sentimentalismo, soubemos tirar proveito, obtendo das ondas uma energia elétrica enorme. Soubemos domar esta fera selvagem e arfante, convertendo-a em um animal doméstico."
"Chego a uma conclusão estranha. A toda equação, a cada figura geométrica, corresponde uma linha curva ou um corpo. Para as fórmulas irracionais, a raiz quadrada de -1, não conhecemos um corpo proporcional, já que não podemos vê-lo. Mas o terrível é que estes corpos invisíveis existem ou hão de existir, pois na matemática muitas vezes introduzem-se sombras estranhas, fantasmagóricas e espinhosas, as raízes irracionais, como sombras projetadas sobre uma tela. Mas nem a matemática nem a morte equivocaram-se até agora."
"Não é estranho que os raios no ocaso tenham os mesmos ângulos que os do sol nascente e, ainda assim, ambos resultem absolutamente distintos entre si? A luz crepuscular é totalmente tranquila, quase um pouco amarga; mas a luz da manhã é prenhe de frescor e de melodias."
"Consentir ao 'eu' qualquer direito frente ao Estado Único seria o mesmo que manter o critério de que um grama pode equivaler a uma tonelada. Daí chego à seguinte conclusão: a tonelada tem direitos, o grama tem deveres. E o único caminho natural do nada à magnitude é: esquecer que é apenas um grama e sentir-se como uma milionésima parte da tonelada."
"Pois a morte é a dissolução total do 'eu' no cosmos. Daí deduzo: se o amor é designado com a letra L e a morte com a letra T, então L = f(T), o que significa que o amor é uma função da morte."
"O Protetor, que tantas vezes demonstrou sua infalibilidade e sabedoria, voltou a ser eleito pela quadragésima oitava vez. Alguns inimigos da felicidade trataram de alterar a cerimônia. Por sua conduta hostil ao Estado, perderam o direito de ser pedras estruturais dos fundamentos, ontem reafirmados, do Estado Único. Seria descabido atribuir alguma mínima importância aos votos discordantes. Seria igualmente ingênuo acreditar que uma tosse na sala de concertos pudesse fazer parte de uma sinfonia heroica."
Conheci o escritor russo Yevgeny Zamyatin através do livro Os Eleitos, do jornalista americano Tom Wolfe. Depois de bastante procurar, consegui ler o principal romance do imaginativo eslavo, a ficção científica Nós (1924). Quando concluí a última página dessa claustrofóbica distopia, pude comprovar que era verdade o que comentavam por aí. É notória a influência sobre o best seller orwelliano. É evidente o caso de apropriação e reciclagem de situações. São gritantes as semelhanças entre as histórias. Observadores mais aguerridos chegam à acusação de plágio. Liberdade é escravidão, originalidade é cópia.
A imagem deste post é a capa de uma edição em inglês. Considerando o contexto, é uma das ilustrações mais criativas e geniais que já vi. A "despersonalização" das letras W e E, que se tornam praticamente indistinguíveis, perdendo sua individualidade e submetidas à fria coletividade dos bloquinhos empilhados.
Se for para resumir os conceitos por trás da obra, digo que se trata de uma crítica a pontos como a tentação do governismo totalitário, o abuso do racionalismo, a utopia do perfeccionismo intolerante, a face opressora do humanismo radical, o fetiche pelo jargão científico e pela mecanização, o remoto ideal platônico da expulsão dos poetas.
Chamou minha atenção o frequente uso de símiles, muitos deles baseados em assuntos da área de exatas. O autor era formado em Engenharia Naval e trabalhou vários anos nesse ramo. Alguns trechos:
"Logo me perguntei quase involuntariamente: 'Por que é belo tudo isto? Por que é bonita a dança?' A resposta foi: 'É um movimento regulado, não livre, porque seu sentido mais profundo é a submissão estética perfeita, a idealizada falta de liberdade.'"
"Pois os conceitos de liberdade e delito estão tão estreitamente vinculados como... digamos, por exemplo, como o movimento de um avião com sua velocidade: se a velocidade de um avião é zero, então este não se move; o que é absolutamente certo. Se a liberdade do homem é zero, então ele não comete delitos."
"Todo poeta autêntico é um Cristóvão Colombo. A América existia já há muitos séculos antes que Colombo a descobrisse. Do mesmo modo a tabela pitagórica existia já em potencial muitos séculos antes que R-13 nascesse, mas somente ele foi capaz de achar, na selva virgem das cifras, um novo Eldorado."
"Naquela época, o mar batia fortemente contra a costa e milhões de newtons, adormecidos na energia de suas ondas, eram úteis somente para despertar os cálidos sentimentos dos apaixonados. Nós, ao contrário daquele sussurro de sentimentalismo, soubemos tirar proveito, obtendo das ondas uma energia elétrica enorme. Soubemos domar esta fera selvagem e arfante, convertendo-a em um animal doméstico."
"Chego a uma conclusão estranha. A toda equação, a cada figura geométrica, corresponde uma linha curva ou um corpo. Para as fórmulas irracionais, a raiz quadrada de -1, não conhecemos um corpo proporcional, já que não podemos vê-lo. Mas o terrível é que estes corpos invisíveis existem ou hão de existir, pois na matemática muitas vezes introduzem-se sombras estranhas, fantasmagóricas e espinhosas, as raízes irracionais, como sombras projetadas sobre uma tela. Mas nem a matemática nem a morte equivocaram-se até agora."
"Não é estranho que os raios no ocaso tenham os mesmos ângulos que os do sol nascente e, ainda assim, ambos resultem absolutamente distintos entre si? A luz crepuscular é totalmente tranquila, quase um pouco amarga; mas a luz da manhã é prenhe de frescor e de melodias."
"Consentir ao 'eu' qualquer direito frente ao Estado Único seria o mesmo que manter o critério de que um grama pode equivaler a uma tonelada. Daí chego à seguinte conclusão: a tonelada tem direitos, o grama tem deveres. E o único caminho natural do nada à magnitude é: esquecer que é apenas um grama e sentir-se como uma milionésima parte da tonelada."
"Pois a morte é a dissolução total do 'eu' no cosmos. Daí deduzo: se o amor é designado com a letra L e a morte com a letra T, então L = f(T), o que significa que o amor é uma função da morte."
"O Protetor, que tantas vezes demonstrou sua infalibilidade e sabedoria, voltou a ser eleito pela quadragésima oitava vez. Alguns inimigos da felicidade trataram de alterar a cerimônia. Por sua conduta hostil ao Estado, perderam o direito de ser pedras estruturais dos fundamentos, ontem reafirmados, do Estado Único. Seria descabido atribuir alguma mínima importância aos votos discordantes. Seria igualmente ingênuo acreditar que uma tosse na sala de concertos pudesse fazer parte de uma sinfonia heroica."