Eu jogando Quake 2, disparando chumbo grosso de uma
Hyperblaster em um paramilitar inimigo de capacete de melancia. Em um
Gradiente SMZ-96 largado no chão de parquê, rolava um mix CD metade
Mad Caddies, metade Dance Hall Crashers. Perto do monitor SVGA, um
pacote de plástico rasgado do qual esparramavam-se, como numa
cornucópia, salgadinhos tubitos sabor milho (sem glúten, jurava a
embalagem). Na cozinha, a mãe - o avental florido, a espessa luva que
parecia uma manopla de vilão de quadrinhos - preparando uma fornada de
quindins, um cheirinho bom que impregnava os vértices superiores das
paredes. Outra pacífica, ensolarada e doméstica manhã. Era um dos
primeiros sábados de 2000, o ano em que faríamos contato com o
apocalipse informático. Y2K. Bug do milênio.
Por volta de a.C. (antes de Celeron), os sistemas antigos, para economia dos preciosos kbytes de disco e de memória, armazenavam com dois dígitos os campos das datas. 17 de setembro de 1939 virava 17/09/39. Resumo do problema que nos ameaçava no pós-réveillon: talvez as máquinas interpretassem o 00 de 2000 como 1900. Previam-se contas de luz debitando um século no total, confusão nos bancos de dados de aeroportos e de agências meteorológicas, baderna no registro dos velhinhos do INSS. Uma das soluções que emergiram, baseada em força bruta: no código do programa, alterar manualmente as linhas (que nos mais complexos chegavam a milhares) que envolvessem cálculo de data, acrescentando duas casas para o ano.
Claro que as imaginações mais suscetíveis, anabolizando notícias lidas nas "indispensáveis" revistas semanais, trataram logo de emprestar tons de excitante dramaturgia às especulações. Seria a rebelião da parafernália. Servidores de sites famosos (UOL, Yahoo!, Ask Jeeves) planejariam um motim. Consoles Neo Geo eletrocutariam adolescentes. Aqueles brinquedos de shopping, com a garra mecânica de capturar bonequinhos de pelúcia - pesquisem por grapplomat no Google -, estrangulariam crianças. Tentáculos de metal trançado, como jibóias cibernéticas, quebrariam os braços de operários em montadoras de automóveis. O Panasonic trituraria minha fita VHS repleta de filmes do John Woo gravados em SLP. Túneis de tomografia pulverizariam os coitados dos pacientes. Softwares de análises clínicas rodados em Windows 98 emitiriam, por pura diversão sádica, diagnósticos errados e letais. Apareceriam insistentes e inexplicáveis mensagens de senha incorreta na hora de sacar dinheiro no caixa eletrônico. Em bases militares, computadores enlouquecidos provocariam um enxame de Tomahawks, Exocets, & Scuds pelo céu. Sinais de trânsito piscariam abilolados. Um ludita, o carunchoso doutor Žižek Pondé, movido por um profundo sentimentalismo analógico, vociferaria pelas ruas caóticas de uma metrópole, entre residências destruídas, caravanas de refugiados e pontos de comércio saqueados: "Reduzimo-nos a números, a uma pantomima binária! Entregamos nossas vidas aos malditos processadores!"
Presenciaríamos terrores medievais como bebês de três cabeças, pragas agrícolas e pecuárias, cometas de mau agouro. Menos, meu povo, menos. Ou: e a montanha pariu um ratinho.
No folclore judaico existe uma figura chamada Golem. De acordo com a lenda contada pelos apedrejadores de Cristo, o Golem foi fabricado com barro e animado pelas artimanhas cabalísticas de um Isaac Abravanel qualquer, lá da vila Canaã. A geringonça antropomórfica auxiliaria o senhor Isaac e família na dura labuta diária, facilitando a execução de algumas tarefas. Ajudar a Rute a pendurar roupa lavada no varal, carregar pesos na reforma da sinagoga, imprimir estatísticas das vendas do lojinha. O ancestral dos robôs era uma entidade sem inteligência, apenas seguia instruções. Só que a invenção saiu do controle, tornou-se hostil aos humanos. Essa história é uma bela e clássica metáfora que mostra como às vezes ficamos infantilmente dependentes/maravilhados/assombrados em relação a certos prodígios tecnológicos. Todos os maiores bens estão cheios de ansiedade. Essa frase não é minha.
Por volta de a.C. (antes de Celeron), os sistemas antigos, para economia dos preciosos kbytes de disco e de memória, armazenavam com dois dígitos os campos das datas. 17 de setembro de 1939 virava 17/09/39. Resumo do problema que nos ameaçava no pós-réveillon: talvez as máquinas interpretassem o 00 de 2000 como 1900. Previam-se contas de luz debitando um século no total, confusão nos bancos de dados de aeroportos e de agências meteorológicas, baderna no registro dos velhinhos do INSS. Uma das soluções que emergiram, baseada em força bruta: no código do programa, alterar manualmente as linhas (que nos mais complexos chegavam a milhares) que envolvessem cálculo de data, acrescentando duas casas para o ano.
Claro que as imaginações mais suscetíveis, anabolizando notícias lidas nas "indispensáveis" revistas semanais, trataram logo de emprestar tons de excitante dramaturgia às especulações. Seria a rebelião da parafernália. Servidores de sites famosos (UOL, Yahoo!, Ask Jeeves) planejariam um motim. Consoles Neo Geo eletrocutariam adolescentes. Aqueles brinquedos de shopping, com a garra mecânica de capturar bonequinhos de pelúcia - pesquisem por grapplomat no Google -, estrangulariam crianças. Tentáculos de metal trançado, como jibóias cibernéticas, quebrariam os braços de operários em montadoras de automóveis. O Panasonic trituraria minha fita VHS repleta de filmes do John Woo gravados em SLP. Túneis de tomografia pulverizariam os coitados dos pacientes. Softwares de análises clínicas rodados em Windows 98 emitiriam, por pura diversão sádica, diagnósticos errados e letais. Apareceriam insistentes e inexplicáveis mensagens de senha incorreta na hora de sacar dinheiro no caixa eletrônico. Em bases militares, computadores enlouquecidos provocariam um enxame de Tomahawks, Exocets, & Scuds pelo céu. Sinais de trânsito piscariam abilolados. Um ludita, o carunchoso doutor Žižek Pondé, movido por um profundo sentimentalismo analógico, vociferaria pelas ruas caóticas de uma metrópole, entre residências destruídas, caravanas de refugiados e pontos de comércio saqueados: "Reduzimo-nos a números, a uma pantomima binária! Entregamos nossas vidas aos malditos processadores!"
Presenciaríamos terrores medievais como bebês de três cabeças, pragas agrícolas e pecuárias, cometas de mau agouro. Menos, meu povo, menos. Ou: e a montanha pariu um ratinho.
No folclore judaico existe uma figura chamada Golem. De acordo com a lenda contada pelos apedrejadores de Cristo, o Golem foi fabricado com barro e animado pelas artimanhas cabalísticas de um Isaac Abravanel qualquer, lá da vila Canaã. A geringonça antropomórfica auxiliaria o senhor Isaac e família na dura labuta diária, facilitando a execução de algumas tarefas. Ajudar a Rute a pendurar roupa lavada no varal, carregar pesos na reforma da sinagoga, imprimir estatísticas das vendas do lojinha. O ancestral dos robôs era uma entidade sem inteligência, apenas seguia instruções. Só que a invenção saiu do controle, tornou-se hostil aos humanos. Essa história é uma bela e clássica metáfora que mostra como às vezes ficamos infantilmente dependentes/maravilhados/assombrados em relação a certos prodígios tecnológicos. Todos os maiores bens estão cheios de ansiedade. Essa frase não é minha.